Saturday, June 14, 2008



A CORRENTE



O gol passou pelo quebra-molas sem diminuir a velocidade e ouviu-se um som em seu interior, que era o da suspensão maltratada. Mas ela não se importava, a única ocupante, Marta, 39 anos, cabelo desgrenhado, um olhar alucinado por trás do pára-brisa imundo, a mais louca de quatro irmãs. O carro estava bastante maltratado, era um gol daqueles antigos, quadrados, vermelho, com duas calotas faltando, duas lascadas, riscos e amassados que denotavam guerra e selvageria.

Era maio, os dias frios já se impunham há algumas semanas e o cinza se projetava como filtro da existência. O gol vencia a resistência do ar gelado acima do limite de velocidade e no rádio tocava uma canção qualquer. Não havia nenhuma emergência, mas de todo modo Marta era viciada no urgente, e tudo que fazia era temperado pela impaciência. Era como se estivesse fugindo. Primeiro da vida, mas inevitavelmente esta inconseqüente jornada a fazia resvalar em pensamentos de morte, ansiando também por escapar desta companheira macabra. Seus olhos fugiam da terra e dos vermes, mas não sabiam para onde ir, não parecia haver horizonte que lhes trouxesse conforto.

Eram quase cinco e meia da tarde e seu filho de 8 anos, Luisinho, estava prestes a sair da escola.

Marta era muito mal vista pelas outras mães, pois parecia uma louca perigosa. Não lhe deixariam fazer parte das rodinhas de mulheres queixosas que aguardavam suas crianças na porta do colégio. Ela mesma não se importava com isso, na verdade, nem havia se dado conta de que alguém fazia algum esforço para excluí-la do que quer que fosse. Marta vivia solitária em seu mundo, que era praticamente inóspito de alegrias. Tinha poucos gostos, mas não precisava deles para distrair a própria mente. Era distraída por natureza e seus grandes olhos castanhos logo desfocavam em privilégio dos pedaços de pensamentos que passavam por trás deles. Sua atenção era frágil e a tenacidade estava nos sentimentos, não nos pensamentos. É claro que as outras mães, após seus encontros em que, basicamente, reclamavam de seus maridos por todos os motivos imagináveis, chegavam em suas casas com seus filhos e, eventualmente, os aconselhavam a não brincarem com o filho da louca do carro vermelho, o estranho Luisinho.

Luisinho era bem diferente das outras crianças. Todos julgavam esta diferença como inferioridade, mas esta deletéria idéia ainda não havia penetrado em seu pequeno entendimento. Ele não era constantemente estranho, apenas se comportava de modo inesperado em algumas situações. O que causava pavor entre as mulheres do colégio era a mania dele mandar as pessoas irem tomar no cu, com fúria desconcertante, quando alguém lhe desagradava. E frequentemente se sentia contrariado pelas pessoas. Todos responsabilizavam a louca por este comportamento revoltante, mas era o menino que eles puniam, pois estava ao alcance e indefeso.

Claro que Luisinho tinha alguns amigos, pois já demonstrava ter personalidade cativante, era um pequeno líder entre as crianças. Seu andar era de uma altivez curiosa entre seus pares, mas tudo se dava de um modo diferente quando caminhava ao lado dos adultos. Seus modos se alteravam com freqüência, era imprevisível. Às vezes submisso, às vezes rebelde, ninguém ainda o havia observado o bastante para descobrir o que exatamente modulava seu modo de ser. Quando agia de modo submisso, com passos tímidos, olhar fugidio e palavrinhas trêmulas, todos aprovavam e repetiam que aquilo era ser bom. Então ele seria um menino bonzinho, alguma coisa a ver com Jesus Cristo. A mãe era a única que não cobrava bondade dele. Tudo que ela queria era atenção.

A aula de matemática estava entrando em seus minutos finais e Luisinho estava perdido em frágeis devaneios. Fantasias de criança. Ele parecia um boneco sentado, exceto por sua respiração lenta e profunda que lhe dava um pouco de humanidade. Os olhos estavam arregalados e paralisados, com o pequeno brilho trêmulo que parecia a lua refletida no lago. Para ele, ninguém mais estava no mundo. Lembrou que tudo existia quando a sirene tocou anunciando o término da aula. Viu crianças indo em direção à porta com as mochilas penduradas em um dos ombros, era algo que se repetia todos os dias. A professora não queria mais saber dele e nem de ninguém.

Luisinho guardou o lápis, a borracha e a régua no estojo, mas com serenidade. Não sentia vontade de correr para a liberdade como seus colegas, que àquela altura já deveriam estar cruzando os portões. Luisinho carregava sua mochila com naturalidade, sem empolgação.

Marta quase derrapou na última curva antes do colégio, mas ela não estava tão atrasada. A aula havia terminado há cerca de três minutos e Luisinho já esperava na calçada após um distraído descer de escadas. A mãe parou o carro no meio da rua e ficou buzinando, mais do que precisava, chegando ao ponto de desconfiarem que ela queria provocar alguém. E queria, era uma gorda, a mãe da Angélica, a gordinha da classe. Marta não ia com a cara dela e sempre buzinava quando a via. Luisinho foi correndo para o carro, abriu a porta, dobrou o banco e foi sentar lá atrás.

“Como foi a aula, filho?”

“A mesma merda de sempre, mamãe.”

“Que bom.”

A mãe estendeu uma garrafa de plástico com leite para Luisinho, ela sempre trazia. Ele bebeu.

Já passavam da cinco e meia da tarde e estava ficando difícil ver as coisas. O mundo estava ficando apagado, sem graça e o trânsito piorava a cada minuto. Os pedestres iam diminuindo e as conversas do dia de trabalho davam lugar às buzinas e aos insultos do homem moderno. As árvores balançavam ao redor das ruas, mas ninguém estava dando a mínima. O gol vermelho pegou um caminho diferente, que Luisinho ainda não conhecia. Ficou curioso com a idéia de não voltar diretamente para a solidão de sua casa.

“Onde estamos indo mamãe?”

“A mamãe vai visitar um amigo.”

Pegaram a rua principal e se afastaram do centro da cidade. A via se desobstruiu e logo estavam num bairro residencial. A noite ainda não havia se estabelecido quando Marta estacionou o gol, virou os olhos para o filho e pediu que a aguardasse.

Ela saiu e andou pela calçada sob os atentos olhos do menino, que agora estava de joelhos no banco para vê-la pelo vidro traseiro. Havia um homem encostado no muro, que começou a falar com a mãe. Depois de algumas palavras, o homem olhou na direção do carro e flagrou o menino que espionava, encontrou seus olhos e seu cabelo, que parecia uma cuia, um capacete, emergindo do banco de trás.

Luisinho o encarou com curiosidade. O menino ficou entusiasmado, seu pequeno coração batia ao ritmo de grandes sentimentos. Ele olhou para aquele homem e se perguntou se poderia ser um novo amigo. Seus olhos arderam com lágrimas sem choro, sua respiração acelerou e sua mão direita apertou as bolinhas de gude no bolso enquanto a esquerda se apoiava no banco. Sua expressão era tensa, perturbada, imprópria para uma criança. O pai de Luisinho estava morto.

Os olhos do homem enfim encontraram os de Luisinho, mas não responderam com o mesmo tipo de emoção. Ele se retraiu, escapou ao infantil convite, encabulado, desviando o rosto e recuando um passo. Marta olhou para trás para saber o que havia deslocado sua atenção, mas logo retomou um diálogo no qual se poderia notar, mesmo fora do alcance do som, seu tom suplicante, a mão direita aberta como uma garra, projetada na direção do sujeito como que implorando para que não fosse embora. Não adiantou, e de longe puderam ser vistas as palavras que ficaram engasgadas em Marta, que não puderam ser ditas e assim tentavam escapar pelos olhos e pelas ventas. Logo que ela iniciou seu retorno ao carro, Luisinho voltou a se sentar e se pôs a observar suas bolinhas de gude. Permitia que as três se movessem na palma da mão, atritando-se entre si como que para triturar o ar. Pegou uma delas, a verde, e a trouxe bem rente ao olho direito, voltando a cabeça na direção do poste, já aceso em meio à escuridão do universo. Ficou, como sempre, fascinado pelo brilho verde dentro da bolinha.

Foi interrompido quando a mãe abriu a porta e se sentou. Não disse nada, mas o menino já havia aprendido a captar sua tensão e sabia quando as coisas não estavam bem. Bastava olha-la, que era sempre como se a luz refletida nela trouxesse o contágio por um sofrimento terrível. Vinha então a febre do desespero, que fazia ranger os dentes. A frustração moldou o rosto do menino e ele sentiu suas energias se perderem, assumindo uma postura encolhida no banco.

O carro arrancou bruscamente e o menino sentiu forças o oprimindo contra o banco e lhe tirando o ar. Sua dificuldade em respirar ficou mais aparente e sua mãe finalmente percebeu pelo retrovisor os olhos do filho vermelhos e semi-cerrados. Ela ficou brava, mas não disse nada. Seguiu em direção à farmácia para comprar qualquer descongestionante, pois já estava acostumada com os problemas respiratórios do filho. Ele, por outro lado, sentia que não conseguiria se acostumar com aquilo, nem em um milhão de ataques. Buscava um modo de superá-los respirando com força, era assim que tentava se impor. Mas então tudo parecia borrado e ele perdia o equilíbrio, perdia a batalha e desistia de respirar.

Momentos depois, o carro estava estacionado e a mãe pingava o remédio em suas narinas:

“Pronto, agora você vai respirar melhor.”

Funcionou mais ou menos. Luisinho já havia aprendido que tudo na vida era mais ou menos.

O carro voltou para o centro e refletiu as luzes da cidade, e pessoas podiam ser vistas passeando e comendo churros na praça. Os de doce de leite eram os favoritos de Luisinho. Logo ele percebeu, com certo pesar, que estavam voltando para casa. As luzes iam diminuindo no sentido bairro.

Cerca de quinze minutos depois, Marta estacionou o gol na frente da casinha em que moravam. Houve silêncio por um momento curto, apenas a respiração dos dois, cada um distraído em seu mundo. Até que a mãe pediu.

“Entra, filho.”

“Vou fazer a lição de casa.”

O menino saiu, destrancou a porta de casa e entrou. Marta ficou no carro pensando no que ia fazer. A rua estava deserta, escura, esquecida pelo mundo. Não se ouviam nem insetos, nem corujas, nem carros. Ela sentiu vontade de expandir os sentidos, fuçou no porta-luvas e achou o que queria. Acendeu e começou a fumar, deixando-se escorregar no banco do motorista. Observou a fumaça dançar rente ao teto do carro, achou que cada nova baforada subia para se engalfinhar com a outra numa espécie de luta. Distraiu-se com isso, o cigarro estava acabando e ela o jogou pela janela. Tudo em volta tornou-se turvo e passou a deixar um rastro de acordo com o movimento de seu pescoço. Sentiu sono, acomodou-se de novo no banco e sua espinha se rendeu à gravidade como a de todos que desistem de testemunhar os dias e as noites. O olhar paralisou e foi perdendo intensidade, até que as pálpebras caíram. Por um momento, conseguiu perceber a escuridão, sentiu um arrepio e uma sensação de calor nos músculos.

Depois de não se sabe quanto tempo, acordou transpirando e apavorada, cercada por janelas embaçadas. Em meio a rápidos batimentos, lembrou-se de tudo que havia visto de olhos fechados dentro daquele carro. No sonho, sentiu-se mergulhada em alguma coisa no meio da escuridão, algo gelado e pegajoso que fazia ruídos nojentos quando ela se movia. Estava deitada, ergueu-se e conseguiu notar que estava coberta de lama. Olhou em volta e não conseguiu descobrir onde estava. Não era na cidade, era em algum outro lugar, um lugar que ainda assim não era estranho, que tinha certo impacto emocional sobre ela, um lugar onde já havia estado, mas apenas durante sonhos e delírios. Era um local vasto, um vale e era noite. A lua estava sempre cheia e muito maior que normal era quase uma espécie de Sol noturno, permitindo uma boa visão de tudo. A lama dava nas canelas e ela andava arrastando os pés contra a resistência do barro. Caminhou por alguns momentos e notou uma forma estranha adiante. Era um monte de argila disforme, ressecada, estranho. Mais adiante havia outro. Ela o observou e detectou marcas de dedos, como se alguém tivesse mexido naquilo antes de secar.

Continou andando e viu uma terceira forma. Esta era intrigante, claramente uma tentativa parca de retratar um ser humano, uma mulher. Estava lamentavelmente deformada, um dos braços havia caído e o rosto estava distorcido em feiúra e agonia. Marta sentiu repulsa e continuou em seu caminho. O que viu em seguida foi o que mais a chocou.

Tinha um homem trabalhando em um monte de argila, modelando-o. Ele não parecia ter muita habilidade, seus únicos instrumentos eram as mãos, grosseiras e impacientes. E ele fazia força sobre o monte de argila, quebrando arestas e ignorando detalhes. Não percebeu a presença de Marta, ou talvez tenha optado por desprezá-la. Estava esculpindo uma mulher. Depois de um tempo, o homem percebeu que o esforço era inútil, pois a argila já havia endurecido. Ele não conseguiria mais moldá-la, não poderia fazer mais nada e se afastou, andando para longe.

Marta aproximou-se da estátua com muito desconforto, alternando o olhar entre a forma e as costas daquele homem. Sentiu tontura quando percebeu que a estátua era ela própria, imperfeita e deformada. Muito mal feita, mas o rosto era inconfundível em sua agonia defeituosa, em sua ânsia pela própria destruição. Começou a chorar e correu na direção do homem cheia de fúria. Agora ela reconhecia o pai dela.

Foi quando saiu do devaneio e quase bateu a cabeça no teto do carro. As lágrimas se misturaram ao suor e ela saiu do carro longe de ser senhora de si. Cambaleou destrambelhada na direção do quartinho em que Luisinho ficava e o interrompeu no meio do dever de matemática, abraçando-o com força. Ajoelhada, abraçava Luisinho e o beijava. Apertou suas bochechas quase a ponto de machucar, puxando e repuxando. Agarrou-lhe os ombros e disse, chorando:

“Tudo vai ser diferente! Eu juro, juro que vai ser diferente meu filho.... eu juro!!!”

Por cima do ombro da mãe, Luisinho chorava e, pela janela aberta, admirava o forte brilho de uma estrela. Na verdade, a estrela, que um dia havia brilhado a anos-luz dali já estava morta. Luisinho não tinha como saber, mas sentia que estava sendo enganado.


3 comments:

Paulo Tiago said...

Fico me perguntando o porquê de "Corrente", sabe? Interessante o texto, essa coisa do Luisinho ser o pária na escola e não ser, ao mesmo tempo. Mais ainda é uma epifania um tanto grotesca como essa, mas com um desfecho... pessimista, não sei. Dá a sensação que não foi a primeira vez, e ele não vai mudar. Ela mesma já deixou o molde e saiu andando.

Sandro Livio Segnini said...

Paulo, obrigado por ter lido. Corrente tem um duplo sentido, pois o autor (no caso eu) pensa que grande parte dos problemas de uma pessoa são transmitidos de uma geração para outra numa corrente de desequilíbrios e distúrbios emocionais. O outro sentido é o de que esses problemas acorrentam a pessoa, a podam em determinados aspectos, ela se torna um rascunho do que poderia ser, como os montes de argila defeituosos.

Mas é isso aí, você captou bem o que eu quis dizer, valeu.

Livraria do Independente said...

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