Tuesday, November 13, 2007



O DIA EM QUE JORGE FICOU BRAVO E RESOLVEU FALAR UMAS VERDADES.


Jorge se mudou para a cidade vizinha, que era um pouco maior que a dele, aos dezoito anos de idade, para estudar agronomia. Já no segundo ano da faculdade, aconteceram coisas que jogaram a vida dele para fora dos trilhos. Isso quer dizer que a situação piorou ainda mais, pois a vida dele já era algo parecido com um trem desgovernado.

Era um rapaz que tinha sempre os olhos caídos e cheios de raiva contida, a boca que não sorria paralisada em gesso e um rosto que parecia comum nas fotografias. Apenas nas fotografias, pois, na dinâmica da conversação, a expressão de Jorge era interpretada frequentemente como escarnecedora. A excessiva sutileza com que deixava emoções vazarem passava uma falsa idéia de indiferença. Suas falas, cujos teores quase sempre estavam em desacordo com a característica entonação serena, eram tidas como manifestações do mais irritante cinismo.

Imaginando-se provocadas, as pessoas retrucavam, mas Jorge não se deixava levar, não perdia a calma. Um de seus traços marcantes era a atitude de sempre olhar para a frente, o que incluía a recusa em voltar atrás para pedir desculpas, ou explicar que havia sido mal interpretado. Seu aparente descaso com a opinião alheia causava perplexidade. Sua personalidade era um mistério.

Morava em uma pensão com mais seis estudantes e não era muito apreciado por lá. Nunca destratou ninguém, mas também não se esforçou em fazer amigos, o que levou todo mundo a pensar que ele era um daqueles cuzões que se achavam superiores. Todos com exceção de Matheus, que era alguém que ele poderia chamar de amigo. Faziam comentários atravessados, que foram se tornando cada vez mais altos e indiscretos, como que implorando por uma reação. Eles precisavam saber, Jorge era amigo ou inimigo? O que será que ele pensava sobre eles? Mas nada, ele apenas falava o essencial e passava a maior parte do tempo estudando e assistindo a aulas. Não freqüentava as festas e, ao que parecia, não corria atrás das meninas dos outros cursos que pintavam por lá.

No segundo ano, Jorge já havia se consagrado como homem sério e estudioso. Parecia ser bem mais velho. A última semana de provas estava prestes a começar, e Jorge se dirigia à pensão, com a ansiedade que sempre o atacava nestes tempos. A preocupação com as notas era uma das únicas vulnerabilidades que deixava transparecer, e isto conquistava a simpatia de alguns professores, ao mesmo tempo em que piorava sua reputação. Assim que chegou em frente ao prédio, encontrou um cara sentado próximo à porta com um violão. Era uma rodinha com dois homens e três mulheres, que Jorge não conhecia. Para falar a verdade, ele estava pouco se lixando para quem eram, a única coisa que fez com que parasse para lhes dar atenção foi o barulho que faziam:

“Bléin!

Eu prefiro SEEeeer!
Essa metamorfose ambulante!
Eu prefiro SEEer!

Bléin, bléin!”

“Pessoal, eu preciso estudar, vamos parar com o barulho, por favor”, pediu Jorge.

Os jovens sentados o olharam cheios de surpresa e extremamente incomodados com aquela audácia. “Não é possível”, seus olhos diziam, “que cara mais cabaço, ah, faça-me um favor, vai pra puta que o pariu, colega!” Mas nenhuma dessas palavras foi realmente conduzida pelo ar, apenas transitaram pelas ondas do pensamento de cada um. Sempre tem o cara que é muito bom em tomar a iniciativa em situações como esta, mas que não é bom em nenhuma outra coisa. Paulinho Roberto levantou-se com o violão e disse: “Vamos gente, vamos deixar o cara ESTUDAR” e arrastou todas as letras da palavra, enquanto entortava os olhos e fingia afetação, em raro momento de canastrice exacerbada. Deu socos com força no ombro direito de Jorge e disse: “Manda ver amigo, tira um DEZ aí pra gente!” e foram-se. Jorge ainda escutou os risinhos de uma das meninas e o outro cara falando: “Ele vai é bater punheta. Pode apostar que vai”.

Entrou, sem olhar para quantas pessoas estavam na pensão. Sentou-se à escrivaninha para estudar. Antes que pudesse começar, Matheus apareceu, amistoso como sempre. Ele era uma pessoa que entendia muito de comportamento social, não que tivesse pesquisado sobre o assunto, apenas tinha esta aptidão, e não precisava do mínimo esforço para manter uma conversa animada por horas. Também seria fácil para ele mostrar que a conversa deveria terminar, por movimentos sutis que passavam a mensagem por trás da consciência da pessoa. Então, ela sairia pensando, nossa, como é gente boa o Matheus. E quando estivesse conversando com outros, e o Matheus virasse assunto, ele diria “O Matheus? Pô, muito gente boa aquele cara!”

Talvez ele fosse o único a ter o traquejo necessário para ver além da carranca de Jorge, para estabelecer um contato e ter acesso a nuances da personalidade do amigo que ninguém havia conhecido. Nem mesmo a mãe ou o pai dele. Especialmente o pai.

Ou talvez não. Talvez Matheus fosse algo completamente diferente disso tudo.

O fato é que Matheus entrou com a mochila no quarto que dividia com Jorge. Eram três quartos, com duas pessoas em cada. “Estudando já? Tá foda né amigo, eu também vou ter que começar, a semana de provas tá aí. Mas antes, eu vou tomar um banho.” Jorge não respondeu, e foi colocando os livros na mesa, bem como suas anotações de aula, o atalho do aluno assíduo.

Cerca de vinte minutos haviam se passado quando o telefone tocou no corredor. Uma, duas, três vezes, e ninguém para atender. Jorge se levantou e foi atender, mais para fazer cessar o barulho do que para saber quem era.

Era a mãe:

“Oi Jorge, tudo bem, meu filho?”

“Oi mãe.”

“Oi mãe? Por que você não me liga mais? Não quer mais saber de mim?”

“...”

“Você tem que ligar mais aqui, meu filho. Parece que não quer nem saber se a gente tá viva ou morta”.

“...”

“E pro seu pai, tem ligado?”

“... não, mãe.”

“Claro que não né? Se tivesse, saberia que ele está no hospital há três dias!”

“No hospital?”

“É!”

“Mas... no hospital?”

“É, quer dizer que ele está doente!”

“Eu sei mãe, mas qual o problema?”

“Até parece que você não sabe.”

“O fígado?”

“Lógico!”

“...”

“Você precisa vir aqui, meu filho. Ele é seu pai, perguntou de você hoje, é melhor você vir. Você tem que visitar ele. Aproveita que é sexta-feira, pega um ônibus, não vai levar nem uma hora pra chegar.”

“Não sei não, eu tenho que estudar, já tem prova segunda-feira, mãe.”

“Nada disso, você vai vir visitar o merda do seu pai, entendeu?”

“Eu vou estudar. Se der, eu apareço.”

“Apareça!”

E desligaram. Mas ele não apareceria, pelo menos não imediatamente, não faria a vontade de sua mãe e nem de seu pai, se é que o velho realmente queria vê-lo. Se é que ele tivesse algo especial para dizer, algo que não fosse a ladainha de sempre, os confusos conselhos de uma mente deteriorada, as insinuações de que o filho deveria seguir seus caminhos tortos do álcool e mulheres fáceis.


Ele tinha provas e precisava estudar, mas seus pais, ao invés de incentivá-lo, ficavam choramingando em camas de hospital e interrompendo com ligações indesejadas de revoltante chantagem emocional. Depois de impregnado por estes pensamentos, Jorge não conseguiu mais convergir a atenção para o que quer que fosse, muito menos para os estudos, que tanto raciocínio demandavam. Deixou o livro aberto na mesma página, para retomar às cinco da manhã no sábado. Sentou-se à cama e, para a própria surpresa, estava consternado. Era um sentimento muito inapropriado na opinião dele e, se não inédito, era algo que há tempos não sentia, um súbito incômodo numa indesejável intensidade.

O pior de tudo era que não conseguia identificar os pensamentos. Imagens carregadas passavam por sua mente como carros de corrida, borrões de uma sensação opressiva, que lhe dominava. Malditos aqueles que quebram o equilíbrio trazido pelo comodismo, malditos os que mostram que no mundo existem mais coisas além daquelas que garantem o nosso conforto. Fugir não adianta, pois a fuga nunca é completa, uma vez conhecidas, essas coisas nunca vão embora.

Assim eram os nós que Jorge mantinha no seio de sua família. Esses foram os motivos pelos quais Jorge já havia desistido há anos de ser uma pessoa normal e completa.

Matheus voltou, de banho tomado, já preparado para dormir:

“Porra meu, o Otávio é um sacana, falou que ia me chamar pra balada hoje, mas me deu o cano. Eu acho que vou dormir mesmo, aí amanhã eu ligo pra... aconteceu alguma coisa?”

“...”

“Eu ouvi o telefone do chuveiro, era o Otávio?”

“Não, Matheus, era minha mãe.”

“Sua mãe? Fazia tempo que ela não ligava hein, como ela está?”

“Ligou pra avisar que meu pai tá no hospital. Tá internado por causa do fígado.”

“Hmmm, bem, e ela quer que você vá até lá e você não quer ir, certo?”

Estas palavras deixaram Jorge surpreso, marcadamente insatisfeito por terem mostrado que ele havia se tornado alguém tão previsível aos olhos de outra pessoa. Por outro lado, uma pequena satisfação gerava um conflito dentro de si, um inegável conforto oriundo da constatação de que ele era observado, o alvo da preocupação de um bom amigo. Como era gente boa o Matheus, conseguia tocar até as almas mais imaturas e ariscas.

“Sabe, não é que eu não quero ir Matheus... é que, é que...”

“Dá uma pensada nisso aí, amigo. Eu vou pegar cerveja pra gente, aí você me fala.”

Assim que Matheus saiu do quarto, a cabeça de Jorge tombou ao apoio das mãos. Não poderia chorar, mas, caramba, como tinha vontade. Por tantos e tantos anos ele havia sido o coveiro das próprias emoções, ficava totalmente perdido quando surgia a oportunidade de desenterrar seus problemas apodrecidos. Ergueu-se, era tempo de fazer o que sabia.

Matheus voltou com duas garrafas e entregou uma a Jorge. Eles começaram a beber e estava gelada e refrescante, algo para lembrar que aquela era uma noite de sexta-feira.

“Então cara, por que você não vai visitar seu pai?”

“Não é nada demais, eu preciso estudar. É só isso. As provas estão aí.”

“É só isso?”

“...”

“Bem, se quiser conversar, tamos aí.”

“Não, é só isso mesmo. Agradeço a preocupação, Matheus.”

E continuaram bebendo, em meio a conversas que transitavam entre banalidades. Matheus preferiu não insistir, embora soubesse que seria bem melhor para Jorge se ele se abrisse e discutisse os assuntos que o incomodavam. Afinal, era o que faria bem a qualquer ser humano normal neste tipo de situação.

Ficou tarde, resolveram ir dormir. Na manhã seguinte, Jorge acordou extremamente perturbado, realmente assustado pela primeira vez na vida. Ficou sentado por alguns minutos, esperando que a terrível sensação passasse, que seu coração retornasse ao ritmo quase cadavérico com que normalmente iniciava as manhãs, e que parasse de suar. Ele sentia como se não soubesse mais quem ele era. Nunca soube, mas apenas começou a pensar nisto naquele momento. O que havia acontecido?

Olhou para a cama de Matheus, ele ainda dormia. Um sono tranqüilo, uma imagem que lhe trazia uma dúvida terrível, a impressão de estar virando viado.

Talvez não se transformando. Talvez apenas se descobrindo, se deparando com uma surpresa muito desagradável sobre si mesmo. Mas ainda assim, era uma idéia difícil de aceitar, pois, pondo de lado qualquer preconceito, ele não se lembrava de ter sentido nada parecido até aquele ponto de sua vida. É verdade que raramente prestava atenção a sentimentos e sensações, e que permitia que seus pensamentos afogassem tudo em falsa racionalidade, mas lhe parecia evidente que algo tão fundamental já devesse ter se manifestado de um modo mais contundente aos próprios olhos. Talvez este tipo de raciocínio apenas valesse para as pessoas normais. Talvez ele tivesse alguma deficiência emocional, algum desajuste sério que fazia com não pudesse ter a menor noção de quem ele realmente era e do que gostava na verdade.

Também, nunca haviam perguntado. Nem ele mesmo havia, pois estava sempre ocupado não perguntando nada sobre si ou sobre os outros.

O motivo de tanto desconcerto, contudo, não era um desejo homossexual manifesto. Olhava para a outra cama, via o amigo deitado, embora ele agora se sentisse muito desconfortável em chamá-lo de amigo, mais ainda de companheiro de quarto, e sentia afeição por ele, apenas isto. Afeição, como a que se sente por um irmão, ou então pelo pai. Não, não pelo pai. Mas era só isso, nada de viadagem. E repetiu isso a si mesmo várias vezes. Nada de viadagem. Mas ainda assim, as imagens do sonho estavam vivas e era um sonho muito gay com Matheus. Mal teria coragem para encará-lo dali em diante.

E procurou não fazer isto durante todo o sábado. Esforçou-se para evitar o amigo e, nisto, acabou se abstendo de todas as outras atividades que não fossem ficar sentado estudando. Deixou de tomar banho, deixou de comer, deixou de se alimentar. Conseguiu, entretanto estudar, num esforço enorme para destruir todo o mundo à sua volta pelo estreitamento, excepcionalmente maior, da própria percepção. Em se tratando de Jorge, aquilo era muito, era a última palavra em negação. Mal poderia ouvir o que se passava ao seu redor.

Parecia um monge sentado com as costas eretas por horas, repetindo em sua mente seus mantras científicos, os dogmas que ele tentava sacralizar na vã esperança de afastar as suspeitas que tinha sobre si mesmo. Que tarefa difícil. Pelo menos ele iria bem na prova.

Três horas após o pôr do sol, o telefone tocou, e tocou de um modo insistente, pois quem estava ligando não teve o bom senso de desistir de importunar Jorge, e os outros inúteis da pensão haviam saído para fazer algo heterossexual. Não teve jeito, ele teve que saltar de seu pequeno bote salva-vidas para encarar a própria fome e a sensação de que estava imundo. Ao atender o telefone, arrumou outra distração; a cobrança por parte da mãe, que insistia na causa perdida que era Jorge, seu maldito filho.

“Então você não vem mesmo hein Jorge? QUAL O PROBLEMA?”

E Jorge, como sempre sem entender, começou a se sentir péssimo, minúsculo, inferior, um fracasso, havia um peso sobre si que o impedia de falar. Sua atenção era constrangida pelo próprio corpo, a tensão na mandíbula, a dor da coluna, vergada sob a cabeça que pesava como chumbo, as costelas que se retraíam e os músculos que perdiam o tônus. Ele se sentiu a criatura mais patética do mundo, e esse foi o primeiro julgamento sério que fez acerca de si mesmo, ultrapassando todas as próprias expectativas, que eram bem pessimistas. Quem ele era? O que ele era? Pra que ele servia? Quem gostava dele? Pensou em perguntar à mãe, mas não o fez, pois nada disso, ele acreditava, seria levado a sério por ela, que tinha outras coisas com que se preocupar, como exercer a autoridade sobre ele, exigindo que viajasse até ela sob o pretexto de encontrar seu pai, aquele homem estúpido de quem ninguém, absolutamente ninguém gostava. Uma abominação, era isso que a coisa toda era. Talvez ele fosse mesmo alguém abominável, talvez devesse mostrar isso ao mundo, expor um pouco suas trevas. Talvez não.

“...”

“Você não vai vir, seu bosta?”

“...”

E desligou. Tirou do gancho, porque sabia que ela ligaria de volta e deu um soco na parede com a mais pura, vermelha e ardida raiva. Foi bom. Quando Matheus chegou, o nervosismo de Jorge dobrou, e ele não sabia o que fazer. Impossível esconder sua inquietação, ele geralmente fazia isto posando como taciturno, pois as pessoas sempre interpretavam aquilo errado, como se ele apenas fosse uma pessoa séria, pensativa, calma. Como estavam enganadas.

“Vai cara, agora vamos encher a cara.” Disse Matheus ao ver como o amigo estava nervoso. “Eu comprei cerveja, vinho, e tem um pouco de vodca também. Vamo lá que você tá precisando. Eu também tô, porque a vida tá foda. É ou não é?” e deu uma piscada malandra e amiga. Jorge estremeceu.

Matheus, o cara que até aquele dia mais tinha conquistado a confiança e a afeição de Jorge, foi apanhar as bebidas. No começo, a situação o havia deixado muito tenso, mas aos poucos foi relaxando. Talvez não fosse tão ruim assim. Quem o poderia recriminar?

O amigo voltou com um drinque já pronto para Jorge, ele era bom nessas coisas de álcool. Estava forte, era como se vapores fossem escapar de seus poros. Uma pontada quente, um impacto que zuniu e reverberou por sua cabeça e a sensação de alívio e relaxamento. Jorge deixou-se cair na cadeira...

Acordou na cama, domingo de manhã e ficou um tempo remoendo as coisas. Pouco tempo foi necessário para que ele pudesse constatar que sua madrugada havia sido extremamente gay e que seus sonhos haviam ficado mais obscenos e cheios de detalhes. Onde aquilo ia parar? Ficou mais confuso e nervoso, aquilo tudo era um pesadelo que substituía sua vida, que já não era nenhum sonho. Daquela vez, havia sonhado que Matheus efetivamente lhe comia a bunda! Essa não!

Ficou na cama olhando para o teto, a cabeça latejando, os olhos secos ardendo na implacável vigilância de absolutamente nada e os braços pesados na cama. Jorge era todo náusea e descontentamento. Depois de um tempo, resolveu olhar as horas, apenas para confirmar a suspeita de que era tarde. Tarde demais para voltar atrás? Essa resposta o relógio jamais poderia dar.

Mas ela viria, e muito mais cedo do que Jorge poderia ter cogitado. No final, a surpresa não foi capaz de pôr fim a sua desventura, mas ele não pôde deixar de se sentir aliviado pelo rumo que as coisas tomaram.

Ele nem ao menos precisou sair da cama para que sua vida se tornasse ainda mais surreal. Tudo que ele precisou fazer foi ficar deitado, tentando criar coragem para voltar a estudar, pois uma série de acontecimentos havia irrompido pela manhã de domingo e a bomba viria parar em suas mãos em poucos minutos.

Tudo começou com um barulho de fúria, de impaciência, de alguém que se aproximava para acertar as contas sobre algo que o estava irritando profundamente. Era o som da cólera, o som das situações em que as palavras se tornam coadjuvantes de gestos agressivos e possíveis pancadas. A porta da casa se abriu com violência e Jorge ouviu os passos que, cada vez mais altos, se endereçavam indubitavelmente à sua pessoa. A porta do quarto se abriu de modo igualmente brusco, num paralelismo que fascinou, num nível muito baixo e quase imperceptível, é verdade, a mente matemática de Jorge. Olhou para a figura indignada parada à porta e não a reconheceu. Era um homem, e não havia nada de particularmente estranho nele, tirando a raiva. Jorge notou que ele segurava um telefone celular cujo modelo parecia muito o de Matheus. Logo depois, constatou que era exatamente o aparelho do colega de quarto, ausente naquele momento.

O homem se aproximou pisando firme e Jorge fez um pequeno esforço com o pescoço para encará-lo direito. Levantou as sobrancelhas em sinal de indagação, tudo bem que várias pessoas moravam na pensão e que por isso havia sempre convidados estranhos circulando por ali, mas aquilo era estranho demais. E o que o homem poderia querer com ele?

Não demorou para descobrir. O cara olhou bem para seu rosto. Afastou rapidamente a cortina para observar com mais luminosidade, e sentenciou seguro:

“É, é você mesmo. É você que é o Jorge!”

“...”

“O quê, não adianta se fazer de besta! Eu já sei de tudo tá entendendo? Você acha que eu sou trouxa?”

“... hein?”

“Olha aqui, seu viado cínico!”

Dito isto, o impertinente e misterioso homem esticou o braço e manteve o celular a alguns centímetros dos olhos de Jorge. Uma foto estava sendo exibida no painel e Jorge estava lá. De bruços, e o pior, sendo enrabado. Presumivelmente, por Matheus, que quis registrar o momento. O rosto de Jorge, de lado apoiado no travesseiro, os olhos quase fechados. Quase. Bem, aquilo explicava a terrível dor que sentia no rabo.

Um choque destes é tão grande que é dificílimo de assimilar.

Como era gente boa o Matheus.

E o homem ia passando as fotos, uma mais ultrajante do que a outra. E já aos berros:

“Seu pervertido! Fique longe do Matheus, ele é meu!”

“...!!!!”

O conflito na cabeça de Jorge era inevitável, estava mais seguro de si agora que percebia que não era viado. Só que sua revolta crescia, pois havia sido extremamente sacaneado por quem sentia enorme consideração e ainda tinha que agüentar o ciúme daquela bicha louca. Ques filhas da puta esses dois, pensou Jorge, QUES FILHA DA PUTA!:

“SEU FILHA DA PUTA!” gritou Jorge, como se estivesse sendo parido naquele momento e recebesse um tapa muito forte na bunda. “SEU FILHA DA PUTA DO CARALHO! CALA ESSA BOCA, BICHA DE MERDA! EU NEM SABIA DESSA PUTARIA TODA!” E levantou-se com rispidez, com todos os músculos do corpo preparados para um massacre. “QUEM É VOCÊ, SEU MERDA?”

“Eu sou o Otávio, namorado do Matheus!”

“AH É MESMO? É MESMO? POIS ESSE F I L H O D E U M A P U T A DO SEU NAMORADO ME EMBEBEDOU, DEVE TER ME DROGADO TAMBÉM, PORQUE EU NEM SABIA! NEM VIADO EU SOU!”

Otávio ficou sem palavras. Não era para menos, ele que estava resoluto em surpreender acabou sendo surpreendido com uma pancadaria verbal, e pelos modos de Jorge, ela poderia se tornar real. Então a reversão da surpresa foi sucedida por um medo crescente e, como costuma acontecer nestas ocasiões, Otávio procurou se acalmar, em clara manifestação de instinto de sobrevivência:

“Me desculpe... eu, eu, não deveria ter entrado aqui desse jeito,eu”

A frase foi interrompida por um soco no estômago.

Jorge nunca havia tido destaque nenhum, sempre foi visto como um zero à esquerda, e nem ele próprio se importava com a idéia. Mas aquela manhã foi histórica. Otávio dobrou-se no chão e tentou puxar o ar de volta, mas não conseguiu, não poderia nem ao menos reclamar da dor. Jorge estava completamente furioso, caminhou por cima dele, pisando com mais força do que precisaria para se apoiar, pegou a carteira e saiu batendo a porta. Em frente à pensão, formando mais um obstáculo, a rodinha de violão, empenhando-se em dar nos nervos. Lá estava Paulinho Roberto:

“Eu prefiro SEEer...
Essa metamorfose ambulante!
Do que ter aquela velha opinião formada sobre TUUUUUDOAH
Do que ter aquela velha....
O QUÊ? NÃO!

BLÉIN! CRACK! TÓIN! PLEC!


Jorge teve que interromper a música para quebrar o violão, ou talvez ele tivesse arrebentado o violão para que fosse interrompida a canção, àquela altura ele já não tinha mais certeza.

E afirmou, categórica e colericamente:

“EU DETESTO ESSA MÚSICA, SEU MERDA!”

O murmurinho das meninas foi esse:

“Ai gente, credo, que horror, nossa... ai, ele é louco, vamos sair daqui gente, ai.”

E todas saíram na hora, menos a Marcinha, que ficou olhando Jorge, ali, a poucos metros dela, primitivo, bestial, de pijama e quase babando. Ela estava visivelmente excitada, mas logo foi acompanhar as colegas.

Jorge saiu correndo e tinha destino certo; a rodoviária. Ia pegar o ônibus para poder visitar o pai no hospital, e aproveitaria a oportunidade para mandar o velho tomar no cu e a mãe, pra puta que pariu.

E ele mandou, com certeza mandou.

Monday, October 29, 2007



SÁBADO DE MANHÃ


Por alguns segundos, o mundo de Ana foi só escuridão, mas uma escuridão que era o bloqueio de todos os sentidos, a ausência da carne, algo capaz de fazer crer que já não se é mais um ser humano.

Mas Ana não estava perdida no nada, era um estado onírico, que dividia o espaço com um crescente fiapo de consciência. Então, Ana pôde experimentar emoções em suas formas mais puras, sem que o mal-estar físico pudesse desviar a atenção. Só que eram emoções negativas, que fariam o estômago dar voltas na barriga, se ela pudesse ao menos sentir que tinha estômago.

Nada enxergava, nada escutava, apenas angústia, ansiedade e medo, muito medo, a sensação de estar indefesa no meio das trevas, o medo de algo que ela já conhecia, mas não de uma maneira consciente, algo que parecia ter acabado de acontecer, mas que reverberava como rédeas emocionais.

Este estranho estado foi passando aos poucos. Era um estado que ficaria pairando, tênue, sobre a mente de Ana enquanto ela estivesse entre o sono e a vigília, mas que logo seria esquecido. Não seria eliminado, mas ficaria nos bastidores de seus olhos, como as experiências que condicionam o viver. O estranho estado recuou diante da consciência que crescia e espantava os bichos noturnos da cabeça de Ana. Primeiro ela percebeu algo estranho, uma limitação pesada a seu ser e, logo depois, constatou que era apenas seu corpo, mais cansado que o normal. Estranhou que isto tenha lhe chamado a atenção só naquele momento, apesar de tantos e tantos despertares passados.

Então, começou a experimentar sensações que logo observou serem de uma manhã ensolarada. A claridade entrou por seus olhos e iluminou sua alma sob a forma de um borrão, que logo assumiu formas tão nítidas, que Ana pôde ver a poeira suspensa no ar, dourada como minúsculos sóis. Quando prestou atenção no corpo, pareceu mais leve e notou que o medo havia desaparecido, dando lugar a uma bela e limpa serenidade. O vento estava fresco e fazia com o que o sol pudesse ser chamado de amigo. O cheiro era familiar, era cheiro de flores, e gramas. Os sons, obviamente, eram de pássaros.

Mas onde ela estava afinal?

No banco da praça.

“Que noite”, ela pensou enquanto olhava ao seu redor “que noite”. Dessa vez ela deveria ter passado dos limites, sem dúvida. Acordar num banco de praça sem se lembrar do porquê era um péssimo sinal, um infeliz indício de que talvez fosse melhor que ela nem descobrisse o que havia aprontado. Sentou-se e olhou o movimento daquela manhã. Parecia ser sábado, o melhor dia da semana. Estava escrito no rosto das pessoas. Mas algo parecia estar fora do lugar e Ana tentava entender o que era. Talvez, passar a noite fora de casa, no banco da praça pela primeira vez na vida, mudasse a percepção da gente sobre as coisas, foi o que ela pensou. Talvez a sensação de inadequação, de descobrir um território novo em nossa cabeça, mesmo que a praça seja a mesma de sempre.

Mas a praça não era a mesma de sempre, ela estava mais charmosa. As pessoas também estavam um pouco diferentes.

Ajeitou a bolsa no ombro, que felizmente ainda estava lá, pôs-se de pé e caminhou, com uma calma que era novidade para ela. Manhã de sábado e nada com que se preocupar. Andou pela calçada e observou as vitrines. Parou diante de uma loja de relógios e ficou se olhando no espelho para logo constatar que estava linda. Estava tão fresca, colorida e macia, seus olhos azuis, o cabelo castanho levemente ondulado e caindo nos ombros. Não fazia idéia de que dormir na rua pudesse ser um tratamento de beleza tão bom. Suas roupas estavam limpas, eram o reflexo de suas idéias.

Continuou caminhando, e tudo parecia essencialmente bom. As pernas se moviam e os pés atingiam o chão de um jeito hipnótico, e ela se deixou automatizar neste transe agradável, numa linha contínua de satisfação. Não se deu conta, mas estava respirando à toda capacidade, e todo aquele oxigênio enchia seu rosto de vida, fazendo com que seus olhos zunissem e captassem com máxima atenção cada quadro do esplendor da vida. Quando deu por si, havia chegado à frente do parquinho da cidade, que reluzia. Ela não sabia que tinham reformado. Fazia muito tempo que não passeava por ali, era verdade.

Não pensou, o mais natural para ela foi entrar para ver as crianças brincarem. E assim ela fez, indo sentar-se sob uma árvore perto de crianças que corriam e se divertiam, como deve ser. Elas pareciam as crianças do tempo dela, afinal criança sempre vai ser criança. Observou as mamães, que vigiavam e falavam feito idiotas com os filhos, estes mais iluminados ainda por se sentirem cuidados. A imagem, tão corriqueira, de uma mãe que empurrava a filha no balanço lhe pareceu a melhor poesia do mundo e seus olhos marejaram.

Ela se sentiu preparada para tudo. Sentiu-se pronta para guiar qualquer um em direção à paz, sentiu-se apta a aplacar o sofrimento de quem quer que precisasse, e tudo que tinha que fazer era estender a mão com uma flor e lançar um olhar doce cheio de significado.

Foi quando ela escutou algo que contrastava com tudo naquela manhã. Uma das crianças começou a chorar e era uma que ela ainda não tinha notado. Estava solitária, sentada no canto do parquinho de areia e era um menino, um menino triste. Ana voltou-se para ele e pôs-se a observar por alguns instantes, as pernas cruzadas e o olhar analítico, cheio de calor e humanidade. Esperou e o choro não foi embora. Ela esperava que alguém aparecesse para acudi-lo, mas as mães estavam todas ocupadas e a do menino estava ausente. Ela hesitou por alguns momentos. Olhou fixamente para aquele choro e sentiu algo trincar dentro de si, por onde vazou um pouco de insegurança. Estava confusa, mas respirou fundo e convenceu a si mesma de que estava realmente pronta. Ergueu-se e caminhou na direção do menino, estranhando por ninguém nem ao menos olhar o que acontecia. Quando finalmente sentou ao lado dele, sentiu felicidade, um vapor lhe enrubesceu e ela quase se afogou em compaixão. Sentia-se feliz pelo menino, por ele ter finalmente conseguido a rara oportunidade de ser notado por alguém, além de uma auto-satisfação egoística que se mostrava cristalina, mas que não fazia com que se sentisse culpada. Nem um pouco.

O menino ainda chorava. Ela inclinou o corpo para frente e o encarou. Sorriu como um anjo misericordioso e com olhos azuis que prometiam uma vida cheia de abraços. O menino reagiu, parando de chorar de tristeza, mas aproveitando a súbita alegria para derramar as últimas lágrimas que faltavam, disfarçadamente. A criança devia ter pouco mais de três anos. Três anos não é idade para ser solitário, se é que existe uma idade para isso. Ela lhe afagou o rosto, secando as lágrimas, e ele se acalmou.

Ana pegou um copo de plástico que estava ao lado e retomou uma atividade que adorava quando criança, que era fazer montinhos de areia com o copo. Achou que seria muito legal compartilhar isso com o menino. Sim, é claro, poderia não ser grande coisa, mas era bem melhor que ficar chorando no canto do parque. Então ela fez, e o primeiro montinho não ficou perfeito, quebrou um pouco na parte de cima. O menino ficou admirado com a lisura da superfície, ficou com vontade de pôr a mão. Pôs e tudo caiu, surpreendendo-o. Estava absorto.

Ela repetiu, e o segundo ficou mais torto ainda, mas a criança gostou do mesmo jeito. Deu um tapinha e a areia se espalhou, o que provocou uma risada do menino e palmas de aprovação. Que brincadeira havia descoberto. Os montes de areia se seguiram e a empolgação cresceu, o menino já estava de pé, saltitante. Mas os montes ficavam deformados, Ana não conseguia entender. Deveria ser muito mais fácil fazer um montinho perfeito. Não era só colocar a areia, virar o copo no chão e depois tirar? O que ela estava esquecendo? O menino pulava e gargalhava e, quando Ana tirava o copo, ele logo pisava ou chutava longe a areia, ficando em êxtase.

Então ela se levantou e segurou-lhe a mão. Levou-o até o balanço, sentia que precisava empurrá-lo no balanço. Ele concordou sem discutir e, em poucos segundos, estava alçando vôos inacreditáveis de graça infantil, em gargalhadas pendulares que ecoavam pelo bosque. E Ana empurrava com a agradável sensação de reviver o passado.

Depois de um tempo os dois saíram pelo parque, ela levando-lhe pela mão, como se fosse uma irmã mais velha ou então... isso mesmo, uma mãe, e o pensamento a surpreendeu, pois ela enfim começava a acreditar que poderia ser uma boa mãe. Ela o encarou e perguntou:

“Onde está a sua mamãe?”

O menino ergueu os ombros e Ana entendeu que ele não sabia.

“E o papai?”

A criança pareceu confusa, não sabia o que dizer.

“Você sabe, o papai, marido da sua mamãe.”

Ele não sabia.

Ana olhou em volta enquanto saíam do parque; viu muita alegria, mas nenhum interesse nela ou no garoto. Teve o cuidado de sair lentamente, à vista de todos, e ainda assim ninguém veio reivindicar a criança O menino só tinha olhos para Ana.. Então ela o levou para passear, o menino merecia um pouco de atenção. Depois ela pensaria no que fazer com ele.

Ana e o menino caminhavam pela calçada, ele num andar divertido, que era uma dança de criança, e ela sorrindo, por entre a humanidade ruidosa. Os carros passavam e, em algum lugar, as batidas de uma construção. Então, ela viu um senhor que vendia algodão doce na esquina e se lembrou dele. Notou também que a criança olhava para o carrinho e para as pequenas nuvens que ali estavam com um desejo manifesto. O primeiro impulso de Ana foi comprar o doce para ele, mas ela se segurou para pensar. Sentia-se responsável por ele e se lembrou das vezes em que lhe haviam negado doces. Na maioria das vezes diziam que ela não podia comer porcaria, que dava cárie e dor de barriga. Mas e daí? Era só comer pouco e escovar os dentes depois.

Ana aproximou-se e pediu o algodão doce, branco. O homem entregou o doce, acenou com a cabeça levemente e saiu empurrando o carrinho. Era uma cena muito familiar para ela, como tudo que acontecia ali, no velho centro. O menino ficou muito feliz e devorou o algodão, com todo o fascínio que o ineditismo lhe trazia, maravilhado com o modo como o doce ia se desmanchando na boca e virando açúcar. Observou bem as partes mordidas, cristalizadas e brilhantes.

Prosseguiram lado a lado, até chegarem à praça. O menino, terminado o doce, não via sentido algum em se livrar da vareta que o sustentava. Em suas mãos, aquilo era ora espada, ora revólver e ele corria pela grama lutando contra inimigos que, mesmo imaginários, estavam por toda a parte. Mas, no final, todos tombavam e ele saía ileso. Nisto, Ana sentiu um leve frescor, trazido por gotículas de água suspensas no ar pela pressão da fonte. Eram pequenos diamantes que faziam o sol brilhar em cores variadas e, em grupo, serviam como tela para a projeção de um belo arco-íris. Ela andou até à fonte, levando o menino pela mão, e ele empunhava a vareta atento, muito mais do que pronto para a próxima aventura.

Quando estavam bem próximos, Ana abriu a bolsa e procurou pela escova e pasta de dentes que sempre carregava. Era muito precavida. Não poderia deixar que todo aquele açúcar corroesse os dentes da criança, e a água da fonte serviria, não era suja e um pouco já bastaria. Lá estavam, relativamente novas, a escova e a pasta. Ana preparou a escova e abaixou-se para falar com o garoto com seriedade.

“Hora de escovar os dentes, vamos lá, é assim que se faz, abra a boca.”

Ele abriu e ela escovou alguns dentes da fileira da esquerda, da parte de baixo. Passou para a de cima, mudou para os dentes da frente e assim por diante. “Tem que limpar tudinho.”, ela disse. E ele assentiu, com a boca cheia de espuma.

“Agora, encha a boca de água, para lavar”, e mostrou como deveria ser feito, bochechando um pouco da água que saía do chafariz. Ele fez igual e cuspiram.

“Muito bem. Muito bem.” Estava orgulhosa. Era verão, era sábado de manhã e os dois estavam com os dentes limpos.

Continuaram com o passeio pela praça, até que Ana viu a mãe que guiava a filha pelos perigos da faixa de pedestres, e decidiu retornar ao parquinho das crianças. Imaginou que, talvez, alguém poderia estar procurando pelo garotinho. Suspirou e seguiu seu caminho.

Enquanto caminhavam, ela sentiu algo mudar. Era difícil de identificar, uma sensação esquisita. Como se ela pudesse perceber a rotação da Terra no envólucro dos ventos, e pudesse ouvir massas de ar a quilômetros de distância. E, longe, muito longe, sons que pareciam ser os de milhares de inimigos chegando a cavalo. A natureza conversava diretamente com ela com sua linguagem característica, em que os signos são folhas que caem, pássaros que abandonam o ninho e nuvens que encobrem o sol. A manhã de sábado tornava-se sisuda, e preparava Ana para o que viria em seguida.

Passaram pelo parque, apenas para constatar que estava vazio. Quando caminhavam em frente ao bosque, o menino se desvencilhou e correu mato adentro. Estranhamente rápido, ela logo o perdeu de vista, entrando no bosque para procurá-lo. Quanto mais ela entrava, mais fechado se tornava, e ela simplesmente não se lembrava daquilo como parte do centro da cidade. Seguiu em frente, olhando para todos os lados em busca da criança, suando de verdade pela primeira vez no dia, as árvores se amontoando, ela sentindo o peso de cada uma delas, o sol sendo bloqueado por manchas negras e a escuridão se aprofundando. Ana retornava à escuridão, em busca do menino. Onde foi parar a criança? Será que aquela gargalhada jamais voltaria a ser ouvida? Será que o ar nunca mais sofreria golpes de vareta? Onde foi parar a criança?

Cansou. A respiração se tornou difícil, os pensamentos embaralhados e achou que seria muito difícil continuar. Quando estava prestes a desistir, viu algo ali no meio do mato que responderia suas perguntas. Aproximou-se e estava tudo embaçado.

A ansiedade cresceu, o medo tomou conta, era como se estivesse diante de um perigo real, uma violência presente. Como se calculasse a fuga, mas estivesse já presa em imensa teia. Lembranças horríveis vieram à tona.

Não, ela ainda não havia visto o suficiente do que estava li no chão, mas de certo modo, já sabia o que era, conseguia se lembrar e ficou furiosa. Atacou-a um sentimento muito mais intenso do que a decepção que se sente ao acordar, quando se é enganado por um sonho bom.

O que ela via ali no chão, já com riqueza de detalhes, era a antítese da imagem que havia visto refletida no espelho da relojoaria. Ela estava morta ali no chão, em estado deplorável e lembrava-se do que havia lhe acontecido, cheia de horror. Os olhos abertos, a boca escancarada, como se tentasse puxar de volta o sopro da vida. Sopro este que observava o cadáver, em estado de total perplexidade.

Não pôde fazer outra coisa que não chorar. Não teve coragem de tocar no próprio corpo. Que injustiça! Que injustiça!

Ouviu o ranger de rodinhas e virou a cabeça na direção de uma árvore por trás da qual aparecia lentamente um algodão doce, e depois outros, até que o velho vendedor surgiu, segurando o carrinho. Ele parou e disse:

“Aninha, você morreu.”

“Eu sei. Eu lembro. Foi aquele homem horrível. Mas o que é tudo isso, o que eu tô fazendo aqui?”

“Vou te explicar. Você foi morta de maneira brutal, violentada e espancada. Sua alma ficou carimbada com terror e revolta, entendeu, e desse jeito ia ser impossível você ficar em paz. Aí você acordou no banco da praça, só que vinte anos no passado, para encontrar seu assassino poucos momentos depois dele ter sido abandonado pela mãe no parquinho da cidade. Você estranhou a praça, porque era a praça de vinte anos atrás. O parquinho que você viu não tinha sido reformado, ele tinha sido é inaugurado há pouco tempo. Aquela cena que te emocionou, da mulher empurrando a filha no balanço era você quando menina com sua mãe. Você também se viu depois, atravessando a rua com ela, mas nem notou. Eu morri faz tempo. Já era velho quando sua mãe vinha comprar algodão doce pra você. Enfim, você veio conhecer o assassino quando criança. Talvez, se na manhã de sábado em que ele foi abandonado, ele tivesse sido salvo por um anjo de coração humano, olhos azuis, cabelos castanhos e sorriso amoroso, talvez a história tivesse sido diferente.”

Ana já havia se erguido, quando ouviu as palavras do velho:

“Agora volte. Volte.” E apontava para a direção de onde ela havia chegado.

Ela voltou.

Lá fora, há vinte anos, ainda era uma bela manhã de sábado. No entanto, tudo estava estático, não parecia mais haver vida em lugar algum. Ela entrou no parque e lá estava o menino sentado no canto do parquinho de areia, exatamente como antes. Ele estava parado, olhando para ela. Ana se aproximou e sentou a seu lado, para analisá-lo nos olhos. Talvez não devesse sentir raiva dele, ela pensou. Seria certo entender que aquela ali era uma pessoa completamente diferente do monstro do futuro, alguém inocente. Mas foi impossível para ela olhar nos olhos do menino sem se lembrar dos olhos do estuprador. Era ele. Era ele mesmo!

E deu um tapa com muita força na cabeça do moleque.

Ele começou a chorar, assustado, pego desprevenido pela agressão, vinda de onde ele apenas havia recebido carinho. Com a mão suspensa no ar para descer outra pancada, Ana olhou bem para ele e captou cada quadro de angústia e de sofrimento legítimo que amarrava aquela criança. Pousou a mão no ombro do garoto e o trouxe para si, afagando sua cabeça. Ele soluçava.

Por fim, se acalmou.

Então, Ana pegou o copo que ainda estava ali do lado e o menino se levantou. Ela encheu de areia e virou no chão. Tirou o copo vagarosamente e viu que o monte de areia estava totalmente simétrico, absolutamente perfeito. Ela se levantou e os dois ficaram se olhando em silêncio. Na rua, o caminhão do gás passava, tocando sua música, apenas três notas duradouras que se alternavam.

Ana olhou para a forma perfeita de areia que estava no chão e pensou:

“Sim, eu estou preparada.”

O menino olhou para ela e acenou com a cabeça. Ela retribuiu o gesto, concordando.

Então, ele deu passos velozes na direção do monte de areia e, de repente, tudo correu em câmera lenta para ela. Veio o chute que fez a areia subir e ela pôde ver cada um dos grãos, brilhando como pequeninos sóis, ficando maiores e mais reluzentes, envolvendo-a. E a música do caminhão de gás crescia, mais alta do que nunca, enquanto ela era suspensa no ar e perdia todos os limites da matéria. Dali em diante, seria sábado de manhã sempre que ela quisesse.


Monday, September 17, 2007



O DOMINGO


A manhã de domingo havia acabado de começar, e tudo levava a crer que o dia seria belo, com o ar dourado e as árvores balançando ao vento, num verde quase que fosforescente. Armando acordou muito contente por ser domingo e por poder ter tempo livre o bastante para pensar no que fazer, até que chegasse a segunda feira sem que ele houvesse feito nada. Isto não o incomodava, pois era um sujeito acomodado e preferia ficar em casa nos fins de semana, apenas usufruindo do que as instalações lhe ofereciam.

Lúcia, sua esposa, não lhe cobrava nenhum programa diferente. Ela tinha uma agenda própria, pessoas para visitar, coisas para comprar e amigas com quem conversar. Quando Armando acordou, percebeu que Lúcia já havia saído. Deveria ser umas dez horas da manhã. Armando levantou-se e foi ao banheiro para sintonizar o espírito com as energias do universo enquanto dava uma cagada.

O aparelho de som tocava músicas New Age, que misturavam sons de instrumentos orientais com uns arranjos eletrônicos, algo que poderia ser usado para meditar, fazer ioga ou tai chi chuan, ou qualquer coisa que tivesse alguma relação com o equilíbrio das energias ou algo assim.

Ouviu-se a descarga e logo Armando saiu do banheiro com o jornal debaixo do braço e com os pensamentos no infinito. Ele nem lavou as mãos. Desceu e foi cortar mamão, banana, maçã e pêra para bater com leite. Ele gostava de passar a faca pelo mamão para retirar as sementes, era muito macio, com pouquíssima resistência, quase como margarina, mas no caso da margarina não haveria pretexto para cortá-la e cortá-la para ter aquele estranho prazer. Algumas passadas de faca e pronto, a margarina retornaria à geladeira. O mamão tinha que ser picado.

Entornou tudo em seu copo favorito, grande, de plástico e azul. Caminhou pela cozinha bebendo a vitamina em goles longos e logo terminou. Encheu de água e deixou na pia, já pensando no que faria em seguida. Foi até a janela, viu que era um bonito dia e respirou fundo. Resolveu sair para sentir o ar da manhã, tomar um banho de sol e ouvir os pássaros.

Logo que abriu a porta, foi abordado por Roberto que babava e sacudia o rabo. Armando sempre achou idiota a idéia de dar nome de gente a cachorro e era o que Lúcia havia feito. Ela deu o nome de Roberto ao pastor alemão deles, Armando não achou bom, mas preferiu deixar assim, pois em sete anos de casado nunca havia colhido um fruto sequer de uma discussão que não estivesse podre, corroído com culpa.

Foi brincar com o cachorro. Uma das brincadeiras era correr pelo quintal para ser seguido por Roberto. Não falhava, o cão sempre o seguia por todo o quintal, de perto. Às vezes, Armando parava e invertia a perseguição, mas isto durava pouco, pois Roberto era muito mais ágil e logo o deixava para trás.

Então começaram a brincar com a bola. Armando jogava e Roberto trazia de volta, divertimento familiar clássico. Roberto nunca ficava entediado, afinal, tudo que queria na vida era comer, ficar correndo e dormir.

“PEGA!”

E Roberto voltou com a bola nos dentes, colocando-a no chão perto de Armando.

“BOM GAROTO! HA HA HA!

E assim continuaram, até que um barulho muito estranho chamou a atenção de Armando. Vinha de trás da casa, do outro lado do quintal e foi um som isolado, de algo que havia atingido o chão e ficado lá, silencioso. As orelhas de Roberto se ergueram e Armando franziu a testa. Ele foi ver o que era. Andou e viu, no chão, o que parecia ser uma pequena pilha de trapos. O cão chegava perto, interessado, mas divagar na espera da decisão do dono. Armando chegou mais perto, curvou-se e olhou.

“O que é isso? Não é possível que seja isso mesmo. Será que é de verdade?” Pensou Armando enquanto mexia naquilo.

Era um bebê negrinho.

Armando o apanhou muito perplexo, completamente chocado. Enquanto o erguia, a cabeça da criança tombava mole para trás. E ele olhava para aquilo, examinando como se fosse uma coisa, um boneco. Mexeu num dos braços e viu que não era uma articulação de brinquedo. Começou a sentir com os dedos que era mesmo pele e que havia a maciez da carne. Os olhos estavam fechados, a cabeça mole, não havia nada além dos trapos e da criança, nenhum bilhete, nada.

Após responder às perguntas que ele mesmo fez, uma pontada violenta de desespero, misturado com ansiedade e angústia o furou no peito e fez suas pernas tremerem. Sua visão quase que sumiu por completo e ele tremia todo, com os pensamentos bloqueados. Entrou em casa com o passo acelerado e colocou o bebê sobre uma mesa. Olhou, olhou, mexeu nele, colocou um pouco de água na cabeça para ver se acordava e nada. Teve a idéia de tentar ouvir o coração do menino, mas para isso tinha que se acalmar, pois do contrário não se concentraria o bastante e acabaria ouvindo o próprio coração que, furioso, tentava quebrar o peito para fugir. Fechou os olhos e respirou fundo. Inclinou-se e encostou o ouvido na criança. Nada. Era um bebê de verdade e estava morto. Mas como? O barulho! Ele poderia ter caído do telhado! Não, um bebê no telhado? Isso seria ridículo! Talvez estivesse morto antes de cair. Alguém deveria ter jogado, mas não de cima do telhado, e sim do outro lado do muro, onde havia um terreno baldio.

Armando voltou correndo ao quintal e puxou um banquinho para que pudesse olhar por cima do muro. Não havia ninguém, nenhuma pista do que poderia ter acontecido. A rua atrás do terreno estava vazia e as casas dali estavam mortas. Apenas o vento e os pássaros, que de repente se tornaram uma turma de inúteis aos olhos dele.

Desceu e pôs-se a andar de um lado para o outro no quintal, sem idéias. O que poderia fazer? Não dava para simplesmente jogar o bebê fora e fingir que nada havia acontecido. Ou será que dava? Mas e se alguém descobrisse? Era um cadáver que ali estava, uma vida que havia se perdido, pobrezinho. Talvez o melhor fosse buscar ajuda, ligar para a emergência, eles é que cuidassem de tudo.

Voltou a olhar por cima do muro. Bateu-lhe um pressentimento de que algo pudesse ter mudado e ele se sentiu compelido a verificar. Não havia nada. Olhou com cuidado, na esperança de surpreender alguém escondido em meio aos arbustos ou se esgueirando por trás de um muro para espiá-lo de volta. Não conseguiu ver ninguém. Era inútil, seja lá quem fosse já teria fugido. Sem conseguir pensar em nada melhor, Armando entrou e se dirigiu à sala para usar o telefone, não sem antes parar diante da criança e fixar a atenção nela por alguns instantes. Continuava lá, do mesmo jeito, nenhum indício de ter se movido, nenhum barulho, nenhum choro. Tinha um cheiro diferente apenas, um cheiro de algum outro lar.

Foi à sala e retirou o telefone do gancho, mas o que iria dizer? Só poderia falar a verdade e nada mais. Discou nove, um, um e esperou.

“Que idiota! É um, nove e zero!” Pensou.

Apertou o botão para desligar e respirou fundo. Começou a apertar as teclas, primeiro o um, depois o nove e antes que pudesse terminar, ouviu o forte barulho da porta que dava para a garagem se abrindo. Era uma porta que tinha uma parte de vidro que sempre vibrava e fazia um som alto, e que era alto demais para aquele momento. Instantaneamente, virou a cabeça na direção da garagem e ficou segurando o telefone mudo. Teve a estranha idéia de que agora seria um bebê negrão, gigante, forte e ruim que vinha pegá-lo.

Os passos na escada foram ouvidos até que a imagem de Lúcia aparecesse, com algumas sacolas nas mãos e uma casualidade que cavava um abismo entre ela e Armando. Este a olhou muito nervoso com o telefone na mão esquerda e a direita o tapando como se não quisesse que ouvissem o que fosse dito. Ela estranhou:

“O que foi, Armando?”

“Lúcia, onde você estava?”

“Como assim onde eu estava? O que aconteceu com você?”

“Eu... você não faz nem idéia! Eu estava no quintal, deve ter uns quinze ou vinte minutos. Eu estava no quintal com o Roberto, você sabe, brincando, daí eu ouvi um barulho e fui ver o que era. Você nem imagina, era uma porra de um bebê que jogaram no nosso quintal! Eu peguei e trouxe para dentro, não sabia o que fazer! Já pensou?”

Lúcia o olhava atentamente e, embora se sentisse muito surpresa, conteve-se e não se deixou tomar pela alteração do marido.

“Vem aqui para você ver.”

E ela o seguiu até a mesa, onde pôde ver a criança, por entre os gestos de Armando, que apontava e dizia: “Olha aí, era desse bebê que eu estava falando!”.

Ela olhava tudo com muito pesar, mas calmamente. Avaliava a situação em silêncio.

“Então, quando você chegou eu estava ligando para a polícia.”

“E o que você ia dizer a eles, Armando?”

“A verdade! Que ele caiu no quintal e eu não consegui descobrir por que.”

“E quem acreditaria numa história dessas? Você parou para pensar nisto, Armando? Eu mesma estou achando difícil de acreditar em você. Se não o conhecesse ia dizer que é louco ou mentiroso.”

Armando não soube o que dizer em seguida, e Lúcia continuou:

“Imagina só, você é da polícia e liga um cara dizendo que está com um bebê morto nas mãos e que não sabe como ele foi parar ali. A história é muito esquisita, é pedir para ser suspeito. Você sabe como eles são, ainda é capaz de pedirem dinheiro para não fazer nada. Aí a gente não paga e pronto, queimam a gente!”

“Mas Lúcia, a gente é inocente! A gente é quase que vítima nessa história!”

“Só sabemos disso nós dois e quem jogou o bebê.”

“Então o que, vão falar que a gente seqüestrou, roubou a criança e matou? Pra que?”

“Não sei, isso ia ser com eles, mas por que não? A gente tá casado há sete anos e ainda não conseguiu ter um filho. Tem até as tentativas registradas na clínica. Por isso a gente poderia ter roubado de alguma maternidade, ou de alguma mãe desamparada. Depois o menino poderia ter morrido por qualquer coisa, doença, acidente, negligência, enfim. Qualquer história que inventarem vai ser mais convincente do que a que você me falou!”

“Mas e aí? Como é que vai ficar? Esse menino tem mãe também, e ela deve estar desesperada. Como é que a gente pode esconder isso da polícia?”

“Armando, pode ter sido a própria mãe que jogou a criança aqui, você sabe como é essa gente! Ainda vai ser capaz de pedir indenização!”

“Isso você não tem como saber!”

“Não vou, não vamos correr o risco.”

Àquela altura, a agitação de Armando ainda não havia diminuído, apenas houve uma mudança na tônica de suas emoções. Ele ia deixando de ficar triste e angustiado para ficar com raiva, raiva por não conseguir encontrar a melhor solução para o caso, raiva por suas sugestões serem tratadas como imbecilidades pela esposa.

“Por que não enterramos o bebê no quintal então?”

“Tá louco Armando? A terra do quintal é rasa, e o Roberto enterra e desenterra tudo ali, você bem sabe disso! Não quero o Roberto trazendo caveira de criança no meio de um churrasco, quando estiver cheio de gente!”

“A gente põe numa caixa e veda bem.”

“Que caixa? Você vai construir? Onde a gente vai achar um caixãozinho em pleno domingo? E tem mais, eu não quero isso aí no meu quintal, que coisa mais mórbida!”

Lúcia foi até o quintal e subiu no banquinho que estava próximo ao muro.

“As crianças todas já saíram para brincar. Não vai dar para enterrar no terreno, todo mundo ia ver.”

“Não tinha ninguém quando aconteceu.”

“Mas agora tem, e vai ficar assim até à noite. Armando, eu não quero perder meu domingo por causa disso, a gente tem que dar um jeito nisso logo.”

“Vamos levar para algum lugar bem longe e aí a gente enterra, ou joga no quintal de alguém, ou deixa na frente de um hospital.”

“Seu carro tá na oficina, esqueceu?”

“A gente podia levar no seu.”

“NEM MORTA!”

“Por que não?”

“Primeiro que vai demorar pra caramba pra achar algum lugar seguro. Vai levar o dia todo naquilo de, peraí, aqui não está bom, tem gente olhando, enfim, não dá, imagina o estresse! Depois, a polícia fica parando os outros no domingo pra procurar droga, eu vi a reportagem. Já estou até vendo o que vai ser, eles vão parar a gente, vão ver o embrulho, descobrir o bebê e aí você vai contar a sua história ridícula do quintal! Não quero!”

Lúcia entrou em casa e foi seguida por um Armando totalmente desconcertado.

“Ué, então eu não sei o que fazer.”

“Tem um jeito que é o mais rápido e seguro. O esgoto.”

“Como assim, não dá pra simplesmente pegar e jogar no esgoto!”

“Do jeito que está não dá mesmo, por isso que você vai ter que cortar em pedaços e jogar na privada.”

“O QUÊ? TÁ MALUCA? EU NÃO VOU FAZER UMA COISA DESSAS!”

“Não grita! Você vai ter que fazer, é o único jeito. O que, você não agüenta? Por acaso é esse o problema, você é um FROUXO?”

Armando não respondeu, estava transtornado demais para dizer qualquer coisa. Não poderia simplesmente dar as costas para tudo aquilo e sair, como faria se fosse uma briga normal. Não era, dessa vez eles tinham um problema ali, que não respirava e nem tinha pulsação, mas estava agitando o domingo.

Saiu do transe com o barulho da gaveta da cozinha sendo aberta e Lúcia mexendo nos talheres. Pôde ouvir um sussurro macabro: “cadê, cadê...”.

“Ah, está aqui.” Disse Lúcia segurando a faca de açougueiro que usavam nos churrascos. Era muito afiada e grande. Ela veio andando e pousou o instrumento com naturalidade ao lado do bebê, como se fosse uma enfermeira na preparação de uma cirurgia. Armando só ficou olhando.

Então ela pegou o avental que estava pendurado e jogou na direção de Armando, dizendo: “Toma.”. Ele o segurou junto ao estômago e ficou amassando aquilo cheio de ressentimento. Os dois ficaram se olhando por um tempo, numa guerra silenciosa. Parecia que nenhum deles cederia.

“Anda logo, veste isso Armando, para não se sujar.”

“Já falei que não vou fazer.”

“Qual o problema, Armandinho?”

“Não me chame de Armandinho!” E colocou o avental, rendido e contrariado. Olhou furioso para ela e apanhou a faca. Virou-se para o bebê e ficou ensaiando os golpes. Nenhum jeito parecia o correto, não sabia como começar e recuava quando previa o sangue escorrendo na mesa. A mulher batia o pé no chão levemente enquanto o marido hesitava. Ele pensava, tentava racionalizar tudo aquilo para criar coragem. Lúcia parecia tão resoluta, talvez ela tivesse razão. Além do mais, nem sempre a vida é do jeito que a gente gostaria, não dá para ficar esperando que as coisas aconteçam para nos agradar todos os dias. Tomar decisões difíceis como aquela era parte de ser homem. E aquele bebê, bem, Armando sabia que não tinha culpa, não poderia ter evitado a morte. Na verdade, foi muito bom ele estar ali bem na hora que a criança apareceu, porque se não tivesse ninguém, provavelmente o Roberto ia comer e seria pior.

Ficou paralisado com a faca quase encostando no corpo sobre a mesa. Não percebeu que ele mesmo tinha parado de respirar. Lúcia já estava perdendo a paciência:

“Esquece Armando, assim não vai dar. Vou chamar o seu irmão, o Marcão. Ele não tem esse tipo de problema.”

A última palavra de Lúcia foi pontuada pela faca que desceu com tudo sobre a mesa e decepou um braço do bebê. Como conseguiu quebrar a inércia, Armando foi até o fim, com uma expressão que oscilava entre o horror, o nojo, a raiva e o medo. Não conseguiu pensar em nada, fazia tudo por fazer. Apenas observou em silêncio que era mais difícil que cortar mamão, por causa dos ossos, e que teria que cortar bem pequeno e fino para não entupir a privada.

Lúcia, aproveitando-se da boa vontade do marido, trouxe um martelo de bater carne e disse: “A cabeça não vai passar, você vai ter que amassar.”Armando obedeceu já visivelmente perturbado e enjoado. Depois de bater bastante, foi ao banheiro vomitar. Não suportou aquele cheiro de açougue. Sentou-se perto da privada e ainda tinha o martelo na mão que, como o avental, estava sujo de sangue. Encostou as costas na parede e respirou ofegante, precisava de um tempo. Tremia e começou a chorar. Olhou pela janela do banheiro e observou as nuvens no céu, que passavam por cima de tudo num ruído contínuo e distante. Malditas nuvens!

Então Lúcia apareceu na porta do banheiro e ficou olhando para ele. Armando não sabia o que esperar dela, ficou tentando adivinhar o que ela estava achando dele. Então ela disse:

“Os pedaços não vão pular sozinhos na privada.”

Armando ergueu-se e foi terminar o serviço. Colocou tudo dentro de um balde e foi despachando aos poucos. Deu cinco descargas ao todo e foi tomar um banho merecido, para tentar esquecer.

Lúcia se dedicou ao acabamento da obra. Tudo que foi usado ela lavou e jogou fora. A faca, o martelo e o avental. O balde também, e até a mesa ela esfregou, desmontou e jogou fora. Todos os panos também, ela deixou de molho e jogou tudo fora, bem limpos. Por fim, se desfez das luvas que usou.

...


Quando a noite chegou, os dois estavam na cama vendo televisão e Armando fazia algumas carícias:

“O que seria de mim sem você? Você é tão decidida e sempre sabe o que fazer, será que eu te mereço?”

“Querido, você é um grande homem, só precisa de um empurrãozinho às vezes.”

Eles sorriram um para o outro e se beijaram de um modo tenro, devagar e sincero. Então fizeram amor. Ela por cima.


Tuesday, August 28, 2007



KELLY



O corpo da moça violentada havia sido encontrado há dez dias, e Cabral estava pensativo na Polícia Civil, decidindo sobre o rumo das investigações.

A descoberta foi o resultado de uma ligação anônima feita ao disque-denúncia da Secretaria de Segurança Pública. A pessoa disse que havia uma movimentação suspeita em uma construção, próxima à casa dela. A denúncia foi posta a termo e enviada à Polícia Civil, tendo chegado às mãos do Delegado Florêncio Neves, que expediu a ordem de serviço aos investigadores.

A ordem foi recebida pela equipe do investigador Cabral, um homem que tinha força no caráter e no corpo. Não tinha nojo de nada, apenas o forte senso de dever e a tenacidade dos homens simples e seguros. Ele cumpria sua função com José Eduardo e Rogério, investigadores mais novos que o respeitavam suficientemente. Ao delegado davam sua obediência e ao Cabral, seu respeito, exceto pelo fato dele torcer para o Corinthians. As conversas sobre futebol sempre terminavam com Cabral sendo zoado por todos, por ser torcedor do timão. Eles diziam que aquilo não ficava bem para um policial.

Cabral argumentava que, ao prender, perguntava ao meliante qual era o time de seu coração. Afirmava, com fingida propriedade, que, estatisticamente, os principais times de São Paulo eram representados de modo equilibrado pela criminalidade. É claro que ele nunca perguntava, mas era bem capaz que alguém acreditasse nessa história, tamanho era o seu prestígio. Lembrava-se da brincadeira sempre que prendia alguém que estava com a camisa do Corinthians. E era freqüente, para seu pesar.

Então, numa manhã de segunda-feira, Cabral recebeu a denúncia que o levaria ao cadáver da moça. Toda a informação que tinha era o endereço e uma suposta movimentação suspeita no local. Como se tratava de uma construção, preferiu ir já de manhã para aproveitar a luz do Sol e para não se arrepender depois, pelo indevido desprezo de seu instinto, que naquela hora lhe indicava a necessidade de urgência. Era algo intangível, uma pista, um palpite escorado pela experiência, os alicerces do que logo seria um raciocínio lógico. Cabral aprendeu a confiar nestes fantasmas, pois quase sempre eles ganhavam a densidade da carne.

Arrumou suas coisas, ajeitou o revólver. Chamou seus colegas, mas apenas Rogério estava disponível. Os dois rumaram para a viatura descaracterizada, uma Ipanema preta, e seguiram para o local.

“Cabral, eu estou de saco cheio do Gérson, cara.”

“O Gérson é um pau-no-cu mesmo.”

“Eu sei, mas é que ele tá passando dos limites, Cabral. O cara é muito folgado, meu! Só fica coçando o dia inteiro e nunca tá perto quando precisa. O celular dele tá sempre fora de área. E ontem eu ouvi uns boatos...”

“Boatos?”

“É cara. Boatos. Parece que ele fica atormentando magnata, meu. E a pedido de outro magnata ainda. E ganha uma grana violenta nesse negócio aí.”

“Olha, eu não sei não, Rogério. O Gérson é muito, mas muito chato mesmo, e por isso eu nem fico surpreso de ouvir essas coisas. Intriga na polícia é uma merda. Cansei de ver uma porrada de marmanjo se comportando feito bichona, porque não ia com a cara do outro. Agora, o Gérson é um cuzão. Fato. Mas acho que o pessoal tá inventando.”

“É, pode ser.”

“Fique de olhos abertos, de todo modo.”

“Acho que é aqui.”

A construção de uma casa. A visão triste e comum de uma obra paralisada. Uma vizinhança pobre, uma criança perseguindo bandidos imaginários com o triciclo na calçada, uma arma de plástico em sua mão e sons imitados por sua boca, que soavam mais como bombas que como tiros. Ao fundo, o barulho de uma panela de pressão.

Cabral e Rogério se aproximaram. Qualquer um poderia entrar lá, a qualquer hora. Seja lá o que houvesse de suspeito por ali, já havia desaparecido, ou se escondido nos projetos de corredores da casa. Cabral pediu que Rogério sacasse a arma e ficasse de prontidão. Então, fez bastante barulho, jogou pedras e telhas que estavam no chão. Era mais fácil colocar fogo no mato do que se embrenhar nele para pegar o rato. Ninguém se apavorou pela algazarra. Ninguém saiu correndo, ninguém apareceu para atirar. Poderia não haver nada lá dentro.

Mas havia.

Entraram, por lados diferentes, adotando uma aproximação mais silenciosa. Foi Rogério que encontrou a moça. Chamou Cabral, que logo apareceu e constatou os sinais de violência sexual no corpo seminu.

Então, dez dias depois, Cabral estava pensativo, sentado na sala dos investigadores. Já havia tomado várias providências, conseguiu a assinatura do delegado para várias ordens de serviço. Mandou interrogar os parentes, os amigos da vítima e pessoas da vizinhança, identificou o dono do terreno, o engenheiro responsável pela obra e quis saber sobre cada um dos homens que havia trabalhado lá. Isto seria difícil. Provavelmente, não saberia sobre todos, talvez algo sobre os últimos. Conferia agora os relatórios em que estavam registradas as diligências, e era uma baita papelada.

O caso havia causado comoção geral. Por várias vezes, a população saiu às ruas, vestindo camisetas com a foto da menina e protestando. O nome dela era Kelly, tinha 18 anos, gostava de sair com as amigas, de cantar no chuveiro e odiava falsidade, inveja e pessoas que se achavam melhores que as outras. Violência urbana era muito comum, mas aquilo, como sempre, parecia ter sido a gota d’água. Cabral já estava estranhando a persistência do sentimento e a força que aquilo ganhava a cada dia. É claro que a imprensa fazia seu papel, repisando e repisando a ocorrência, mostrando fotos da menina direto, e cobrando as autoridades por meio de âncoras indignados. Na véspera, várias pessoas passaram reclamando, muito contrariadas, em frente ao próprio prédio da Polícia, ostentando faixas e cartazes, e alguns usando aquele nariz de palhaço.

Em meio à multidão, várias frases podiam ser ouvidas:

“OS MARGINAIS ESTÃO RINDO DA LEI!”

“ATÉ QUANDO ESSA IMPUNIDADE?”

“É REVOLTANTE! O BRASIL ESTÁ DE LUTO!”

“O BANDIDO RESPEITOU O DIREITO DELA?”

Cabral também estava muito perturbado por tudo que tinha ocorrido, afinal, ele também tinha filhos. Mas olhava para a situação de um modo menos passional. Pela sua concepção, um grande dano havia sido causado, algo que nunca seria reparado. Mas dali em diante, seria impossível fazer Justiça. O máximo que se poderia obter era a medida preventiva, encontrar o responsável para que, se mais crimes ocorressem, que ao menos fossem pelas mãos de outro homem.

Cabral olhou a relação de alguns homens que estavam entre os últimos a trabalharem nas obras. Passou os olhos pelos nomes e começou a checar as fichas em anexo. Uma delas chamou a atenção: internações na FEBEM por furto qualificado, roubo a mão armada e lesão corporal dolosa. O único com antecedentes, o único que já havia despejado violência criminosa sobre o mundo e conhecido a face mais sincera do Estado. Josimar Aparecido dos Santos, 24 anos, residência fixa, pedreiro, casado e com três filhos. Mora no mesmo bairro que a menina, não muito longe da construção. Seria este o homem?

O inquérito policial já havia sido instaurado e tramitava sob os cuidados do escrivão Edson. Cabral entregou o material novo ao escrivão, que o juntou aos autos e os enviou ao Delegado Neves.

O expediente terminou e Cabral voltou para casa, tentando não ser policial perto da família.

No dia seguinte, o Delegado examinou os autos, a ficha de Josimar lhe chamou a atenção. Aquilo era, sem sombra de dúvida, um grande progresso nas investigações. Da próxima vez que os repórteres viessem perguntar, ele poderia dizer que já não estavam mais de mãos vazias. Ali estava um possível suspeito, alguém que muito em breve poderia pôr um ponto final na história toda. Fora este homem, nada de relevante havia sido descoberto, nenhuma testemunha, nenhum inimigo, nenhuma ameaça, nenhum ex-namorado furioso. Não haveria nada se não fosse por Josimar, o pedreiro delinqüente, desgraçado, ordinário, sem-vergonha, estuprador e filho da puta. Mais uma ordem de serviço expedida, dessa vez para que o pedreiro fosse ouvido na Delegacia.

Era cedo e Cabral ainda não havia chegado. Os outros colegas de equipe estavam ocupados, averiguando outras denúncias anônimas. A ordem de serviço chegou à sala dos investigadores e encontrou as mãos de Gérson, o cara de que ninguém gostava. Ele pegou o papel e pôs-se a ler. Em poucas linhas já percebeu que era relacionado ao caso da Kelly, o mesmo caso que o BONZÃO do Cabral estava supervisionando. Bem, havia um carimbo de urgente na folha, portanto, Cabral não poderia reclamar depois por Gérson ter cumprido uma diligência tão importante, que não poderia esperar.

Gérson não hesitou, fez com que a pança apontasse porta afora e foi pegar o malandrão. Entrou uma viatura preta, vermelha e branca que espalhava orgulhosa para todos que era da Polícia Civil. Saiu cantando pneu, rumo à casa de Josimar.

No caminho ligou o rádio. Não o da Polícia, o FM:

“You better run, you better do what you can! Don't wanna see no blood, don't be a macho man! You wanna be tough, better do what you can, so beat it, but you wanna be bad!”


Curtiu o som e aumentou o volume:

“Just beat it, beat it, beat it, beat it! No one wants to be defeated! Showin' how funky and strong is your fight! It doesn't matter who's wrong or right! Just beat it, beat it Just beat it, beat it”

Perto do local, o capeta fez uma visita a Gérson e pôs-lhe um sorriso maléfico no rosto. Ele resolveu ligar a sirene e chegar a toda velocidade, fazendo o maior escarcéu.

As pessoas ficaram assustadas e começaram a espiar pelas janelas. Tudo aquilo tinha que ter alguma coisa a ver com o caso Kelly.

Gérson parou e saiu da viatura com a arma empunhada: “AQUI É A POLÍCIA PORRA!”

Cabral apenas conseguiu chegar no prédio da polícia no final da tarde. Havia recebido uma ligação de seu colega José Eduardo pedindo ajuda para cumprir uma ordem. Ele tinha que ouvir várias pessoas de uma empresa acerca de uma denúncia de estelionato e precisava da experiência de Cabral. A tarefa foi demorada e acabou se apurando que não havia crime ali.

Assim que chegou, Cabral foi falar com o escrivão Edson sobre o caso Kelly. Edson contou:

“Ah sim, Cabral, hoje o Dr. Neves ouviu aquele pedreiro, o Josimar.”

“Tão rápido assim?” A voz de Cabral escondia muito mal sua instantânea apreensão.

“Ah é, quem trouxe o camarada aqui foi o Gérson.”

“O Gérson? Posso ver o termo do depoimento?”

“Claro.”

Edson entregou a folha com o depoimento de Josimar e lá estavam, nome completo, filiação, data de nascimento, número do documento, estado civil, ocupação e as declarações. Cabral leu. Josimar só falava em Jesus. Disse que era evangélico há dois anos, que havia se arrependido do que tinha feito na juventude, e que a FEBEM era horrível. Até começava a ser pastor. Disse que conhecia Kelly da vizinhança e que aquela era uma menina abençoada, todo mundo gostava dela. Afirmou que tem orado por ela todos os dias e que estava muito triste pelo que havia acontecido. Foi pedreiro, e o trabalho naquela construção havia sido o último. Todos foram dispensados antes do término da obra, ele ficou desempregado, mas logo Deus operou um milagre em sua vida e permitiu que vivesse com a ajuda da igreja. Nunca havia conversado com Kelly, a conhecia apenas de vista. Disse que tinha três filhos, e que a mulher estava grávida do quarto. Não havia visto nada de suspeito nas imediações da construção nas últimas semanas e, desde que começou na igreja, tem passado a maior parte do tempo lá, auxiliando na parte administrativa e participando dos cultos. Nada mais disse e nem lhe foi perguntado.

Cabral devolveu o papel a Edson e este comentou: “Não teve indiciamento e nem nada, não temos nada contra esse cara. Pedimos para ele ceder material, para que o Instituto de Criminalística compare com o esperma encontrado na vítima, e ele fez isso sem problema, foi muito solícito. Inclusive, ele nasceu na mesma cidade que o Dr. Neves, então os dois passaram um tempo falando sobre isso, sobre como o interior está diferente, essas coisas. É Cabral, isso só quer dizer que vai ter mais trabalho ainda para você”.

Cabral não quis alimentar a conversa, sua perturbação crescia, pois sabia que aquilo tudo era muito ruim. Estava convicto de que precisava agir rápido. Saiu da sala dos escrivães e atravessou o corredor, até passar pela sala dos investigadores. O plano inicial era seguir em frente, mas quando viu Gérson lá dentro teve que parar. Não chegou a entrar, apenas inclinou a cabeça porta adentro e vociferou exasperado:

“GÉRSON! VOCÊ É UM FILHO DA PUTA MESMO, HEIN?”

Todos na sala ficaram estáticos. Gérson não se atreveu a responder, pois havia ficado claro para todos que aquela era uma pergunta retórica. A única resposta veio da janela, que tremeu de modo imperceptível diante da voz de trovão.

Cabral seguiu pelo corredor, vermelho. Rogério, seu colega de equipe, conseguiu sair do pequeno choque que envolvia todos na sala e o seguiu até a Ipanema.

O Sol estava terminando de se retirar e Josimar estava no chão debaixo de uma pancadaria que poderia ser comparada ao martírio de Cristo. Assim que deu as caras no bairro, a notícia se espalhou, e a população revoltada se aglomerou para recebê-lo. Estava a um quarteirão de sua casa quando foi atropelado pela manada e cada um dos populares queria fazê-lo pagar pela morte de Kelly. O linchamento de Josimar não foi planejado, foi espontâneo, veio do calor do momento.

“COMO VOCÊ TEVE CORAGEM DE FAZER AQUILO COM A MENINA SEU MONSTRO?” e bateram-lhe com um martelo que o atingiu no cotovelo com toda a força quando tentou se proteger. O choque impediu que continuasse se defendendo e logo ele não conseguiu mais correr.

“NÃO TEM LEI NESSE PAÍS! DEIXARAM O ASSASSINO SOLTO!” e tome paulada na cabeça, chute na barriga, pedrada na nuca, soco no peito e arranhão no pescoço. “CHEGA DE IMPUNIDADE!” e tome pisão por tudo quanto era parte do corpo de Josimar. Sentiu muita dor, seu coração disparou, toda a adrenalina veio lhe aumentar o desespero e apenas pôde implorar:

“PAREM! PELO AMOR DE DEUS PAREM!”

“VOCÊ PAROU QUANDO ELA PEDIU? VOCÊ PAROU QUANDO ELA CHOROU? MONSTRO!”

A única coisa que podia fazer era gritar de dor e chorar. A únicas palavras que saíam eram pedidos de clemência. Eram fracos “nãos” que saíam de seu coração pisoteado, mas ninguém se comoveu. Ninguém parecia ver a trágica expressão de agonia em seu rosto, pois o sangue a cobria. Estava ficando deformado e o corpo todo anestesiado, apenas sentia seus membros sendo repuxados e o seu corpo balançando na física das pancadas. O mundo foi sumindo e o pouco de consciência que sobrou foi canalizada para a oração:

“Deus todo poderoso, me ajude, me dê paz, faz meu sofrimento parar... Deus misericordioso, me socorra em sua glória...”

Dois estrondos interromperam tudo que acontecia ali. Era Cabral que corria em direção ao massacre dando tiros para cima a fim de espantar a multidão. Rogério o acompanhava.

“Rogério, rápido, tem um batalhão da PM que não é longe! CHAMA OS CARAS!”

Rogério obedeceu e foi até à viatura. Cabral continuou, teve que disparar mais um tiro para o alto. “AQUI É A POLÍCIA! PODEM PARAR COM ESSA MERDA!”

As pessoas pararam de dilapidar o corpo de Josimar e olharam para a arma de Cabral intimidadas. Era como se um predador maior e mais perigoso houvesse se aproximado. O investigador olhou para Josimar e notou que ele ainda se mexia, ainda respirava, mas estava num estado deplorável. Vomitava sangue.

Josimar virou a cabeça, abriu os olhos na direção de Cabral com a arma empunhada. Não entendeu nada, pois tudo que se lhe apresentava era um vulto.

A situação ficou assim por alguns minutos. Cabral formou um círculo de proteção em torno de Josimar à distância, apontando a arma para todo aquele que tentasse chegar perto. Às vezes dava advertências em alto e bom som para que ninguém se movesse.

A Polícia Militar começou a chegar e foi seguida por uma ambulância. Os PMs controlaram a multidão e os para médicos seguiram com Josimar para o hospital. Cabral e Rogério entraram na viatura e seguiram a ambulância.

Rogério reclamou no caminho: “Que merda isso vai dar, cara”.

Cabral comentou, tenso: “Puta que pariu, é muito difícil que tenha sido ele. Não tinha nenhum crime sexual ou homicídio na ficha dele.”

Josimar morreu a caminho do hospital.

Três meses depois, Cabral lutava para continuar com as investigações, mas ninguém queria mexer na caixa de marimbondos. Foi quando chegou o laudo pericial do Instituto de Criminalística, atestando que o esperma encontrado na vítima não era de Josimar. Ele era mesmo inocente. Àquela altura, não se falava mais tanto do caso Kelly na televisão, nem nos jornais. A inocência de Josimar foi noticiada de maneira tímida, rápida, e o apresentador do telejornal logo passou para o assunto seguinte, sem fazer qualquer comentário de indignação, sem cobrar as autoridades.

Ninguém fez passeata com cartazes e a foto de Josimar estampada na camiseta. Ninguém saiu às ruas para mostrar seu repúdio à impunidade presente no país e para clamar por Justiça.

E no bairro de Kelly e Josimar, as pessoas espiavam o mundo encolhidas atrás das janelas. Todas amarelas e acuadas, prontas para darem o bote.


Wednesday, August 22, 2007



SEM FUTURO.




Jefferson era um garoto de oito anos que não chamava a atenção de ninguém. Alguns, nas raras ocasiões em que pousavam os olhos sobre ele, o achavam parecido com um rato. Outros achavam que ele não se parecia com nada.

Jefferson acordou bem disposto naquela manhã de sábado, embora estivesse sendo esmagado pelo peso de adversidades que ele nem imaginava que pudessem existir, como os problemas sociais que limitavam sua vida e a massacrante deficiência da estrutura emocional de sua família. Era um convívio cujas lições o menino já começava a assimilar sob a forma de taquicardias, choros freqüentes, febre e uma crescente agressividade. Era surpreendente que ainda conseguisse ter noites de sono tão boas como aquela.

Os outros irmãos, cinco meninos e três meninas ainda dormiam empilhados no mesmo quarto, serenos, aproveitando a presença de um teto sobre suas cabeças como se fossem reis. Os pais também estavam ali no meio e roncavam, encobrindo as crianças com uma respiração mais pesada, problemática, adulta.

Jefferson vestiu sua camiseta mais nova, dentre as duas que podia escolher. Era branca, já encardida, com umas coisas escritas, uns desenhos e um número. Ele não sabia que aquilo tinha que significar alguma coisa, e se algo deste tipo lhe fosse sugerido, acharia muito estranho que sua camiseta tivesse algo a dizer. Apanhou sua caixa de engraxate e alguns trocados que estavam sendo escondidos para o sábado, e pôs-se a caminhar com altivez, o que era um excesso para um garoto de oito anos analfabeto. Na saída, encontrou Rambo, um cachorro vira-latas tratado pela mãe, que saudou o menino como seu mestre, sem barulheira e com muita dignidade.

O garoto abandonou o casebre, escoltado por Rambo.

O ar estava um pouco turvo por causa da terra que subia. Jefferson já estava familiarizado com a visão, pois era sempre o rastro deixado pelo Fiat 147 do vizinho Jorge. Ele deveria ter saído há pouco tempo. Uma pena, pensou o menino, pois podia ter conseguido uma carona para a cidade e, bem mais rápido do que esperava, estaria no centro destruindo a vida de alguém no fliperama.

O jeito era caminhar até o ponto de ônibus. O trajeto não era tão ruim assim, embora Jefferson nem pensasse sobre ele para cogitar reclamações. A travessia era sempre marcada por mulheres que penduravam roupas e conversavam, homens fumando cigarros e falando de futebol, além de algumas poucas crianças correndo, rindo e brincando. O tipo de imagem que persiste na memória, e que logo ganha aquele colorido todo especial da nostalgia. Jefferson não sabia, mas qualquer porcaria que acontecesse em sua vida naqueles dias seria lembrada com carinho em seu futuro.

A figura do engraxate perambulando pelo bairro era algo com o que todos ali estavam acostumados. Era muito diferente do que acontecia no centro, em que as famílias boas passeavam e fingiam que não o viam. Será que alguém pensa sobre o que está passando pela cabeça de um engraxate quando cruza com ele pela rua? Na verdade é o mesmo que acomete toda criança; sonho, fantasia, vontade de vencer e passar por cima de tudo. Vontade de dominar o mundo.

Jefferson havia escolhido começar pelos fliperamas da cidade.

Depois de uma caminhada de dez minutos, ele chegou ao ponto. Rambo, sentado ao seu lado, já condicionado pela repetição, esperava que o ônibus chegasse para entregar seu amo à proteção do vagão de lata. Rambo nunca poderia ter noção do que era a circular, mas já havia aprendido que o menino não precisava mais dele quando lá subia. Então ele passeava um pouco e fazia um social com seus colegas da vizinhança, à moda dos cães. Às vezes ele tinha sorte e topava com uma cadela no cio, e tudo funcionava mecanicamente, como ocorre com alguns homens. E como alguns homens, ele não poderia ter a menor medida de quantos filhos tinha espalhado por aí. E como alguns homens, raríssimos é verdade, ele um dia havia encontrado uma cadelinha que era sua filha e foi pai dos próprios netos. Rambo era um cão velho e presepeiro.

O ônibus chegou e parou para as pessoas que acompanhavam Jefferson e Rambo. Eram pessoas que pareciam boas, mulheres na maior parte, com sacolas de feira e a idade oscilando entre média e avançada. Todas exalavam o conforto das mães, avós e tias, mulheres que falam bastante e que pegam crianças no colo. Mulheres que compartilham entre si amarguras em segredo, mas que sorriem para o mundo.

O ônibus era de um amarelo velho e tinha algumas linhas nas laterais que variavam entre o marrom e o vinho. Em cima delas, em marrom, estava escrito circullaire, pois apenas circular seria muito sem graça. O menino subiu e passou por baixo da catraca. Logo que encontrou uma cadeira de plástico vazia, sentou-se. Estava ansioso, sua felicidade de criança transbordava. Olhou pela janela e viu o ponto se afastando cada vez mais rápido. Notou que Rambo, sentado com a língua de fora, ainda olhava para ele.

A viagem não demorou mais que quinze minutos. Era cedo, não havia trânsito. E era sábado. Como sempre, o menino prestou atenção ao percurso, ao modo como o ônibus descia os morros da vizinhança em direção ao centro. Passou pelo comércio de bairro, e olhou para aquelas lojinhas cheio de esperança. Ele sempre poderia guardar uns trocados para comprar aquelas balas que ficavam nos potes de vidro no balcão. Os brinquedinhos de plástico como carrinhos, aviões e soldados o fascinavam. Era tudo muito legal, e ele ainda não havia se ressentido por não poder tê-los. Numa descida, viu uma enorme escadaria de cimento na encosta, cercada por um verde que brilhava bonito ao Sol. Lembrou-se de quando sua avó o havia levado para passear por ali e lhe dera um sapo de borracha de presente. Era marrom, tinha os olhos vidrados e ficava com a boca sempre aberta. O pai havia jogado fora para ensinar alguma lição maluca.

O ônibus parou no terminal próximo à praça da cidade, região em que havia lojas turísticas, hotéis, bancas de jornais e o bar. Aqui os jovens se encharcavam de cerveja. Jefferson, de certo modo, sentia que o destino natural de todo homem era embebedar-se, mas achava que sua vez ainda não havia chegado.

Encostado na praça havia um hotel grande e tradicional, que encantava os turistas. No térreo havia uma galeria em que estava o melhor dos quatro fliperamas principais da cidade, e ela ficava aberta para todos. Na verdade, era difícil ver um hóspede jogando por lá. O lugar era dominado pela molecada, dos trombadinhas aos ricos e de crianças a adolescentes. Alguns adultos jogavam também, mas costumavam ser despachados sem piedade pelos meninos, que eram verdadeiros gladiadores nas máquinas.

Jefferson, aos oito anos de idade, era um prodígio. Jogava melhor do que engraxava sapatos e isto significava muito, pois era muito hábil em seu ofício. Posicionava o pé do cliente e ficava com a cabeça baixa, totalmente imerso. Não falava. Terminava o serviço mais rápido do que o normal, o que sempre causava espanto e desconfiança. Os homens o olhavam de lado, mas antes de lhe chamarem a atenção, davam uma conferida nos pés. Invariavelmente faziam uma cara que somava a surpresa à aprovação e pagavam com gorjeta. Jefferson gostava de ter este reconhecimento de um adulto. Não sabia que gostava, mas gostava de tudo, dos elogios abertos e dos silenciosos, do cheiro de couro, de graxa, de jornal e de cigarro. Sentia-se muito bem.

Entrou na galeria a passos rápidos. Que lugar lindo era aquele, piso de madeira, paredes bem pintadas e conservadas e, em um dos lados, as paredes eram vidraças por onde a luz do dia poderia entrar e dar o brilho do ouro aos vencedores.

Logo de manhã o fliperama estava movimentado. Outros engraxates já tinham chegado na frente dele e estavam jogando alucinados. A febre eram os jogos de luta, tanto os que em se poderia sair nas ruas batendo em pessoas vestidas como bandidos e punks, como aqueles de duelo. O grande termômetro dos fliperamas do mundo todo, o mais importante definidor de status entre os jogadores era o Street Fighter 2. Ou, como os garotos diziam, o estrite. Não sabiam o que o nome queria dizer, mas estrite era estrite, jogo de pancadaria, cheio de magias e poderes e lutadores do mundo todo. E aqueles botões? Eram seis botões que tinham de ser dominados, fora os truques com a alavanca para dar os golpes. O cara tinha que ser bom.

Jefferson foi até o caixa e comprou tudo que deu: cinco fichas. Segurou-as com força de ansiedade. Não podia perder, para ele era tudo sempre muito difícil, o desafio começava muito antes dele inserir a ficha na máquina e ouvir o som da ficha caindo para liberar o controle para ele. Na verdade, ele nem conseguia se lembrar de quando o desafio havia começado.

O menino teve que esperar na fila. Foi-se o tempo em que se poderia procurar outro jogo. O Street Fighter tinha sucateado o resto, não valeria a pena desperdiçar fichas com os demais, não se o que se queria era fazer um duelo de verdade. Havia jogos muito legais como Final Fight, Vendetta e Tartarugas Ninjas, é verdade, mas Jefferson queria ser o rei, e não dava para ser rei disputando por ninharias. Apenas o Street Fighter poderia coroá-lo.

Então ele esperou. Só havia uma máquina de Street Fighter 2 ligada naquela manhã e a garotada estava caindo em cima, do mesmo modo que fariam com as meninas, após entrarem na puberdade. Havia um moleque que estava detonando os adversários, comendo as fichas de todo mundo. Ele parecia ter uns onze anos e jogava com um sorriso malvado e metido. Jefferson já o detestou de cara e decidiu mostrar quem dava as cartas por ali.

Quando chegou a sua vez, o engraxate bateu na máquina cheio de moral e fez a ficha cair ruidosamente. Nem olhou para a cara do adversário. Escolheu logo o Ryu, pois estava a fim de apelar e sabia que não poderia facilitar contra o Guile de seu inimigo. A tela mostrou um avião voando até os Estados Unidos e, com um avião caça no fundo e alguns americanos de uniforme torcendo, a luta começou. A música era muito emocionante.

A cada segundo que passava, Jefferson ia ficando mais furioso. O oponente não lhe dava chances, pois era muito rápido para soltar sonic boom, também conhecido como “alec-fu”. Era um poder que todos faziam devagar, pois era necessário segurar a alavanca para trás por um tempo para carregar o golpe. Mas este menino era fera, segurava no tempo preciso, não deixava nenhum instante sobrar. O mesmo acontecia quando aplicava o anti-aéreo do Guile, que chamavam de facão. Ele o usava toda vez em que Jefferson tentava saltar sobre os sonic booms. O engraxate foi encurralado e perdeu o round, tendo sido arremessado contra um caixote que estava no canto do cenário.

Mas é claro que isto não poderia ficar assim, Ryu ainda era mais forte e mais rápido que Guile. Seus golpes saíam com mais facilidade, todos sabiam disso! E Jefferson era bom, já havia desbancado vários Guiles em sua vida. Quando no começo do segundo round, o oponente lhe acertou um soco na boca, sua frustração cresceu e a raiva tomou conta. Deu mais firmeza às mãos e ficou mais concentrado. Com ódio no olhar, Jefferson começou a encaixar os “Radúguets” e “Roriúquens” de Ryu. Berrou:

“CHUPA, FILHO DA PUTA!”








Isto esquentou a luta. A mesa virou de um modo que surpreendeu a pequena platéia da manhã de sábado. Jefferson estava dando um cacete no menino, cujo descontentamento crescia e atrapalhava cada vez mais. Perdeu o segundo e já estava levando uma surra no terceiro round.

“SHHHLLLLUUUUURRRRP! CHUPA! QUE DELÍCIA!” A tela ficou cheia de pontos coloridos de cuspe.

Essas provocações de Jefferson deixaram o outro menino muito nervoso. É claro que ele perdeu e foi embora. Quando ele saiu, Jefferson ainda esticou o pescoço e gritou:

“DESCULPA AÍ VIU!”

A história se repetiu nas lutas seguintes, o jogador era substituído apenas de um lado da máquina. Deveria ter vencido umas oito lutas na seqüência. Depois disto, o movimento diminuiu um pouco, e Jefferson foi obrigado a disputar apenas com a máquina. Era chato, ninguém parava para assistir, ninguém fazia um comentário do tipo: “NÓ! HUMILHOU! HUMILHOU!” ou então um: “NÓÓÓ! VAI DEIXAR BARATO?”. Isto fazia muita falta para o menino. É claro que um ou outro escorregão na luta o faziam protestar, e os palavrões proferidos eram surpreendentes na voz raivosa do garoto de oito anos.

Estava ficando um saco. Já estava prestes a matar de pancada o Bison, chefe final, pela décima quinta vez na vida, quando sua salvação entrou na galeria. Era um rapaz gordo, com uns dezesseis anos de idade, cujos maiores prazeres eram o jogo e a comida. Tinha tudo para ser um grande fã, disposto a levar a experiência do Street Fighter para além da simples proposta do leve entretenimento. Mas, seria ele bom o bastante para vencer um engraxate com a metade de sua idade?

O jovem se aproximou e cumprimentou Jefferson. Não o conhecia, mas assim mesmo o fez porque além de gordo era um menino educado, que não merecia de modo algum as troças de que sempre era alvo. Jefferson olhou de volta muito sem graça, sem saber o que dizer. Não disse nada e voltou sua atenção ao jogo. O rapaz deixou algumas coisas perto do cinzeiro, colocou a ficha, deu o start e fez aparecer na tela a frase: “Here comes a new challenger!”

Jefferson tentou se recompor, pois a coisa toda havia ficado séria uma vez mais. Os outros meninos já se aproximavam curiosos e se perguntando se finalmente havia chegado a hora de quebrar o domínio do pobre diabo. Mas, por mais que tentasse, Jefferson estava tendo problemas para se concentrar. Seus olhos não conseguiam focalizar bem o que acontecia no jogo e a resposta dos músculos das mãos aos estímulos visuais da tela estava ficando lenta. Estava muito cansado.

A luta começou sem que ele estivesse preparado. Desde logo apanhou do Ken escolhido pelo inimigo. Era a mesma coisa que o Ryu, por isso, o talento do jogador é que ditaria o rumo das coisas por ali. Só que Jefferson estava tendo sua habilidade sufocada por uma fraqueza crescente, um mal estar terrível. A barriga doía e era de fome, dessa vez era de fome.

Ele não era nem a sombra do que fora há meia hora. Lento, amador, distraído, estava perdendo a ficha, podia sentir várias engraxadas de sapato se perdendo, e seus esforços se tornando inúteis. Já não tinha mais força para gritar ou provocar, nem para humilhar. Não havia o que comemorar. Ryu tombou dramaticamente, com um gemido de cortar o coração e, quase que se poderia ver uma lágrima nos sprites dos olhos do lutador. E se ergueu para continuar sendo espancado e o pior de tudo, por seu grande rival, o Ken. Os meninos costumavam comentar que Ryu e Ken quase sempre se destruíam na porrada, mas, no fundo, eram grandes amigos. Só que nada daquilo importava naquela hora.

Metade do segundo round, Jefferson estava perdendo. Foi quando tirou os olhos da tela e viu que, próximo ao cinzeiro, havia uma barra de chocolate. A embalagem era vermelha e branca, o que mais poderia ser se não chocolate? Voltou a olhar para a tela logo. Deu um pulo que não tinha nada a ver e pagou por isto, foi ao chão mais uma vez. Ergueu-se, sem muita perspectiva. Olhou de novo para o chocolate e depois para a tela. Nada estava acontecendo. Chocolate, jogo, chocolate, jogo. Estendeu o braço num soco veloz, apanhou o chocolate e saiu correndo puxando a caixa de engraxate. Ryu ficou lá parado, apenas balançando em sua pose de luta normal, enquanto o menino corria sem olhar para trás e segurava o chocolate junto ao peito.

Jefferson saiu da galeria disparado, virou à direita, atravessou a rua, passou pela ponte que encobria o córrego, contornou o prédio das Thermas e foi parar na praça que tinha a fonte do leãozinho. Sentou-se num canto muito escondido, rasgou a embalagem e comeu o chocolate. Era maravilhoso, teve que se controlar para poder aproveitar. Teve a disciplina de um verdadeiro campeão, deu mordidas pequenas para render e sentir a doçura que poucas vezes podia provar. Ainda assim, tudo acabou rápido e o menino ficou lá parado olhando a embalagem rasgada. Passava os dedos por ela, sentia a textura e a fonte do leãozinho derramava água. Deixou o plástico de lado e foi lavar o rosto. Os dedos esfregavam a pele da cara e escorregavam em meio ao óleo, sujeira e suor. Era refrescante, lavou as mãos e bebeu um tanto bom.

Não demorou para perceber que continuava com fome. Então viu que perto dali estavam outros dois meninos, um da idade dele e o outro de apenas seis anos. O mais velho carregava uma caixa de engraxate também. Jefferson decidiu se aproximar, pois já conhecia os dois. Chegou e ficou olhando para eles. O mais velho, Patrick, olhou de volta invocado e falou:

“Que que foi?”

“Nada”. E Jefferson olhou para baixo.

“Que que tá quereno?”

Jefferson não disse nada. Voltou a olhar para os dois. Então perguntou: “Cadê os outro?”

“Ué, tão lá na praça perto da avenida” respondeu Rogério, o de seis anos.

Um pouco mais de tempo passou sem que acontecesse nada.

“Vamo lá”, convidou Patrick. E foram.

O lugar era próximo, além de muito agradável para as crianças. Muitas árvores, algumas tão velhas e com galhos tão podres que faziam os velhos reclamarem da prefeitura. Chegaram a um lugar bem difícil de ser visto de longe, cercado por árvores e moitas. Encontraram um grupo de cinco meninos, sentados, que conversavam e faziam brincadeiras de mão. Eles estavam cheirando uma cola miserável.

Não demorou para que tratassem Jefferson como um igual. Passaram-lhe um saco com a cola amarelada, de uso comunitário. Aquela cola que servia para colar os mesmos sapatos que ele engraxava. Parecia que ele estava destinado a se associar sempre às coisas mais rasteiras, como sapatos, cola, graxa e meninos de rua. Em sua cabeça infantil, era só o fliperama que salvava sua dignidade. No entanto, ele teve que abandonar o posto por causa da maldita fome. Mas a cola haveria de matá-la, além de permitir que ele fosse alguém diferente por alguns momentos. A cola fazia com que perdesse a noção de si mesmo, do próprio corpo e nada, nenhum dos problemas se fazia notar. Tudo que se sentia era o mundo girando lentamente.

O saco de cola inflava e murchava na boca de Jefferson, sendo o reverso do que acontecia em seus pulmões. Depois de pouco tempo ele já estava muito louco. Não era bom, mas assim a fome desapareceu.

Ficou lá sentado até que foi forçado a sair correndo por causa de um policial que se aproximava. Na verdade, ele não correu, não deu. Tudo que conseguiu fazer foi cambalear. No entanto, o oficial resolveu não perder o seu tempo perseguindo a ralé da cidade. Jefferson estava sozinho de novo, e o efeito da cola diminuía aos poucos. Pensou em voltar ao fliperama, pois ainda tinha quatro fichas. Por outro lado, poderia guardar as fichas para o domingo. Domingo era um dia bom, o centro ficava cheio de manhã por causa da ferinha e alguns homens sempre queriam ter os sapatos engraxados. Havia uma barraca em que ele poderia comprar churros, de doce de leite e de chocolate. Era uma das coisas de que mais gostava, além de pipoca. Havia vendedores bondosos que vendiam para ele mais barato, quando o dinheiro não dava. Alguns davam de graça, de pena. Não dar nada para bêbado era fácil, bastava chamá-lo de vagabundo e expulsá-lo que ele mesmo concordaria e iria embora. Mas com um menino cheio de fome seria sacanagem.

Jefferson gastou o tempo dando voltas pelo centro. A cola já tinha passado e a fome estava voltando. Decidiu voltar para casa, na esperança de que o alimentassem. Caminhou até o ponto de ônibus e encontrou mais gente que queria voltar para casa. Esperou.

O ônibus chegou e ele subiu, rastejou por baixo da catraca e ficou de pé vendo as pessoas andando na rua e os carros das famílias que saíam para jantar ou visitar avós. Começou a se cansar e precisou sentar. Cochilou e acordou perto do ponto em que deveria descer. Esperou um pouco mais e desceu. Rambo tinha vindo para buscá-lo e olhava para ele com uma satisfação contida. Os dois seguiram para o casebre e nada foi dito, naturalmente.

Passaram pelo Fiat 147 de Jorge, que não estava vazio. Tinha o Jorge lá dentro e uma moça, mas Jefferson não saberia dizer o que estavam fazendo.

Finalmente chegaram. O nariz de Jefferson estava escorrendo. Logo que entrou, encontrou o pai sentado no cômodo que era cozinha e sala improvisada, com algumas tralhas doadas. O pai se levantou e foi até o menino.

“Quanto ganhou hoje?”

Jefferson ficou quieto.

“Não ganhou dinheiro hoje?”

“Não.”

Recebeu um tapa violento na orelha, que o lançou ao chão. Não conseguia mais ouvir direito, apenas um zumbido e, ao fundo, alguns berros do pai que não dava para entender. Estava grogue, havia perdido o referencial, tudo girava.

Quando Jefferson caiu, suas fichas de fliperama se espalharam pelo chão. O pai, percebendo que não era dinheiro, ficou muito puto. Então era naquilo que o moleque enfiava o dinheiro?

Jefferson ouviu o pai chutar as fichas para longe enquanto via Rambo parado à sua frente. O menino estava com a orelha colada no chão, tremendo, os olhos ardendo e a garganta se contraindo, com muita vontade gritar e chorar. Mas não conseguia, estava paralisado, estava com medo, com raiva e com todos os sentimentos ruins do mundo.

O pai saiu, mas logo voltou.

Jefferson viu o pai parando ao lado de Rambo. O cachorro o olhou desconfiado, mas nada fez quando o homem pôs a mão em sua cabeça e a encostou no chão, no mesmo plano em que estava a cabeça do engraxate. Os dois amigos se olharam nos olhos e um contagiava o outro com o próprio medo.

O pai se certificou de que Jefferson estava vendo e deu um tiro na cabeça de Rambo. Ele havia saído para buscar o revólver trinta e oito.

E Jefferson abriu a boca, arregalou os olhos, ficou vermelho e tremeu mais ainda. Chorava com o pior desespero que é o reprimido. Tentava gritar alguma coisa, mas não conseguia. No máximo, uns gemidos animalescos de puro ódio. Suas lágrimas se espalhavam pelo chão como o sangue do cachorro.

Rambo continuava com os olhos abertos, e Jefferson jamais se esqueceria.

O pai saiu e deixou o filho no chão para sempre.

Jefferson, depois de um tempo saiu correndo cheio de horror. Deitou-se no quarto junto com os irmãos. Ouviu os gritos horrendos que a mãe deu quando viu o que jazia na cozinha. Fechou os olhos com muita força e viu todos os lutadores do Street Fighter fazendo seus principais golpes. Foi nisso que pensou à noite inteira.