Monday, January 11, 2010

A MENTE HUMANA

Tertulião acordou com uma terrível enxaqueca. Não houve nada de restaurador no sono, muito pelo contrário, pesadelos corriqueiros demais para serem lembrados haviam drenado sua vitalidade e, de modo irreal, viu-se mergulhado na rotina em que toda a energia sempre ia embora. Vamos nos erguer, pensou Tertulião. Ficar sentado um tempo observando a claridade do dia resplandecer sobre a imundície da escrivaninha. Mas não conseguiu nem mover os braços, nem as pernas, nem girar os quadris na manobra usual para erguer o lado esquerdo do corpo, que era o mais ágil. Estava preso, colado à cama. Não sentia as coisas direito, não conseguia se concentrar em nada. Àquela altura, já havia se convencido de que deveria se preocupar com seu estado. Poderia gritar, mas sua solidão construída e mantida por anos era eficaz em garantir seu isolamento mesmo em casos de emergência médica. Ainda que houvesse alguém mais no apartamento, sua voz estava entalada. Diante do desagradável afunilamento das alternativas resolveu, sumariamente, empregar suas poucas energias disponíveis no desespero silencioso da alma.

Abriu e forçou os olhos, sentiu-os molhados o que já era um progresso. O mundo já não era mais escuridão; focos borrados de luz já penetravam sua vista flácida. Então, aconteceu a prova irrefutável de que havia algo muito estranho, como se tudo não passasse de um sonho ruim.

Sentiu a orientação do corpo mudar. A cama inclinou-se com ranger metálico e o pescoço logo notou a mudança, permitindo que a cabeça tombasse para baixo, como acontecia nas súbitas quedas de pressão. Mas o que significava tudo aquilo? Definitivamente, não era a cama dele, pois jamais teve esta curiosa função. Nem era algo útil para uma cama fazer.

Então, percebeu a presença de outras pessoas. “Será que este é o meu quarto?”. Pensou. E tentou pronunciar tais palavras, pois já sentia que tinha cabeça e boca. Mas foi frustrante, porque a língua parecia não estar lá. Ao abrir a boca, teve uma sensação tão desagradável quanto insólita. Primeiro uma convulsão, não muito violenta, mas bastante desagradável, depois o esôfago e a garganta se alargaram, com ruídos fundos, orgânicos e viscosos. Não havia dor, mas sua garganta parecia estar dando passagem a um limão. Então, na boca, uma gosma gelada deslizava pelas paredes de modo rápido e gelatinoso, para enfim ser excretada em pequenas convulsões rumo ao chão. “Vai estragar o carpete!”.

Seguiu-se uma sensação de alívio, um prazer estranho e inédito. Era como se estivesse mais leve, não apenas fisicamente, mas o vômito, sagrado e benfazejo, parecia tê-lo livrado de suas preocupações. O bem estar durou pouco, pois algo renovou sua já intensa desconfiança de que algo trágico para si estava em andamento: começaram a empurrar a cama para frente, como se houvesse rodinhas. Parecia um pesadelo em que o “eu” é identificado, porém não há o pleno controle das faculdades do corpo, sofrendo-se de um mutismo opressor. Mas algo indicava a realidade da desgraça; não conseguia ver-se de fora do corpo, como era comum durante o sono, no seu cinema particular.

O máximo que conseguia notar eram clarões que se seguiam e, somados a uma brisa constante, sugeriam o movimento. Então, uma parada, denunciada pela inércia do corpo inútil projetado contra amarras. A inércia estava ali, era algo familiar pelo menos. Mas não as amarras, estas causaram ainda mais estranheza e medo, afinal, eram um empecilho a sua reação, sinal de que qualquer que fosse o plano, haviam lhe reservado o papel de vítima.

Então, um giro e vários sons distinguiram-se, indicando que equipamentos estavam sendo acionados. Um jato líquido contra o seu corpo o fez debater-se, movendo o pescoço em todas as direções. Não tinha certeza, mas desconfiou que sua cabeça dava voltas completas para fugir dos jatos. O cheiro era cítrico e o sabor, ácido.

Fora o medo, estava ficando furioso. E como haveria de ser diferente? Aquilo era muito inconveniente, algo de uma impertinência sem precedente. Quem estas pessoas pensavam que eram?

Percebeu que estava gritando.

“Marcos Tertulião, acalme-se.”

Era isto mesmo que acabara de ouvir? Não. O que o outro disse, na verdade não foi dito, foi urrado de um modo estranhamente calmo em um idioma desconhecido. Mas o cérebro de Marcos compreendeu. Captou o sentido dos sons monstruosos com exatidão, chegou a desconfiar que estava delirando, mas sua fantasia se foi quando também ele pôde comunicar-se, traduzindo pensamentos claros em gritos e zumbidos selvagens que não se recordava de ter aprendido.

“Quem é você? O que está acontecendo?”

“Já está melhorando. Em breve, estará totalmente recuperado”. A isto seguiram-se outros ruídos, que Marcos supôs serem vocais, embora não formassem palavras significativas. Eram antes interjeições de alegria, o que trouxe alívio considerável, pois reduziu a possibilidade de tratar-se de ambiente hostil. A menos que não estivessem felizes pela perspectiva de seu bem estar, mas sim pela boa disposição de Marcos que possibilitava a realização de algum propósito que lhe provocasse desgosto.

“O que está acontecendo? Quem está aí?”

“Mais uma vez, Marcos, pedimos que se acalme. No momento, é impossível você entender o que está acontecendo. Mas não tema, tudo funcionou perfeitamente, e nada de ruim lhe acontecerá.”

Outra pessoa se manifestou:

“Este é o momento ideal para a informação. É melhor que ele saiba antes de recuperar a visão”.

Silêncio. Silêncio não; ruídos baixos o bastante para deixar Marcos às cegas. Mas que conversa era aquela? O corpo, o corpo precisa ser verificado, algo deve estar faltando, deve ser isto, e o desespero voltou. “Ei! Ei vocês!”

Subitamente:

“Nós acabamos de criar todos os aspectos da sua mente humana e inserimos num corpo dos nossos. Todas as estruturas mentais, bem como o conteúdo foi nossa primeira tentativa bem sucedida de reproduzir uma mente humana.”

Ouviram-se sons alarmantes de aparelhos eletrônicos.

“O espécime está instável”, urrou calmamente um dos presentes. Acrescentou:

“A mente tenta acionar sistemas que não existem neste corpo.”

Foi a última coisa que Marcos ouviu antes de apagar.

“Interessante”, prosseguiu o ser. “A mente está se protegendo de algo que parece ameaçador. O mecanismo de defesa é acionado mesmo que o corpo esteja saudável, fora da influência da mente perturbada.”

“Uma mente forte, realmente. Mas forte em sua fragilidade.”

“Exato. Tenaz em sua capacidade de fugir.”

Eram dois cientistas que conversavam diante do corpo inconsciente que abrigava a mente de Marcos Tertulião. Cada um deles tinha quatro braços e quatro pernas, couraça acinzentada e viscosa em pontos estratégicos, olhos panorâmicos em torno do encéfalo, boca discreta, porém elástica e um grande interesse no estudo do planeta Terra e seus habitantes.

Na verdade, um planeta insignificante, onde tudo que poderia ser considerado importante já havia sido descoberto. Um planeta fácil, para estudantes abordarem em seus trabalhos básicos. Contudo, tal não era a opinião dos dois cientistas que montaram Marcos. Eles desejavam ter contato real com um daquelas engraçados seres, mas não seria possível uma viagem à Terra. Muito tempo, dinheiro e a certeza do escândalo, como era a regra naquele planeta.

Marcos acordou sentindo-se enganado. De certo modo, tinha certeza de que existira um dia como um ser humano, que habitara a Terra, e desempenhara atividades maçantes. Era o que suas lembranças lhe mostravam, ainda que de um jeito vago e pobre. Mas tudo isto poderia ser mentira, já que, como disseram, havia sido criado há pouco.

Havia penumbra, mas não por culpa de seus olhos. Conseguia enxergar bem, e seu corpo funcionava em constante prazer. A vontade de viver floresceu lindamente entre os gorgolejos suspeitos de sua garganta. Pensou. Acariciou o pescoço com surpresa no tato, pois tamanha aspereza não lhe era familiar. Com a outra mão, afagou-se no peito, com a imediata sensação de que acariciava uma árvore. Com a outra mão, coçou o topo da cabeça e no lugar do cabelo havia geleia. A outra mão foi erguida diante dos olhos.

Marcos então percebeu três coisas. A primeira era que havia sido solto. A segunda era que tinha quatro mãos. A terceira, era que a cor e textura de sua pele eram grosseiras e grotescas, o que fazia com que se parecesse um monstro. Mais do que isto, ele finalmente era um monstro, de modo que os sentimentos inapropriados de uma vida poderiam ser justificados e perdoados.

Girou para o lado esquerdo, imaginando que lhe daria mais agilidade, mas a verdade era que seu corpo estava perfeitamente simétrico. Saiu da cama e sem perceber, tinha quatro pés descalços no chão, que martelavam enquanto seu corpo se movia. Olhou para baixo e viu a curva do tronco, bastante acentuada, para trás. Com a visão panorâmica, viu ao redor de si quatro pernas finas e fibrosas. Muito elegantes.

Contente com o corpo, passou ao exame do ambiente. Uma bagunça. Caminhava sobre a superfície espelhada de material desconhecido e via os traços do próprio reflexo. Um indivíduo desconhecido o olhava de volta, mas sempre tinha sido daquela maneira. Ao redor, inúmeras prateleiras sustentavam objetos cujas funções eram difíceis para um humano entender. Marcos, apesar da primeira confusão do olhar, conseguia intuir vagamente a utilidade das coisas. Tinha a ver com as necessidades do organismo estranho e, embora nunca lhe tivessem esclarecido seu próprio funcionamento, o corpo tinha um modo silencioso de preparar o intelecto para as atividades básicas de manutenção.

Apanhou um objeto no formato de cuia, e logo o colocou sobre a cabeça, na certeza de que tinha algo a ver com a geleia que ali estava. Subitamente, sentiu eletricidade por trás dos olhos e a imagem de inúmeros objetos estranhos e interessantes passaram a conversar com ele. Eles ofereciam sempre opções, ligar ou desligar, acender ou apagar, frio ou quente. Então, sentindo-se poderoso, iluminou o ambiente.

Quando eles retornassem, teriam de lidar com indagações incessantes e apaixonadas sobre a própria existência. Seria um longo dia, ou tarde, ou noite. O tempo passou sem novidade. Ele percebeu que não precisava sentar-se, pois não se sentia cansado, e de todo modo não havia cadeira no recinto.

Depois de um tempo que Marcos não poderia precisar, os dois retornaram, entrando após o deslizar surpreendente da porta oculta. “Como está se sentindo, Marcos Tertulião?”.

“Como acham que estou me sentindo?”

Os dois cientistas entreolharam-se sem muita perplexidade, aliás com total indiferença. Esta foi a conclusão de Marcos, mas a verdade, que ele ainda não tinha preparo para notar, era que o simples gesto de terem se encarado já os lançava longe da indiferença.

“Você nunca existiu no planeta Terra. Nunca ocupou um corpo humano de verdade.”

“Mas e todas estas memórias?”

“Precárias. Fatos que escolhemos como conteúdo mínimo para a mente. Mas nela há caracteres inatos, que nada tem a ver com lembranças e fantasias, pois não se tratam de conteúdos, mas sim estruturas mentais. São os nexos que organizam os conteúdos assimilados, de modo que passam a fazer sentido. Em todo universo conhecido esta dinâmica se dá de forma muito peculiar nos humanos. Então, não interessa sua experiência, mas sim as estruturas anteriores a ela, que nascem com a mente e que são, fundamentalmente, o elemento que a distingue como humana.”

Marcos tinha lembranças de uma vida relativamente longa como ser humano. Não parecia haver parentes ou amigos, apenas pessoas sem rosto que se sucediam todos os dias, repetindo frases, como se um conjunto limitado delas fosse sorteado em todas as tentativas de comunicação. A repulsa sucedia-se contra si e contra os outros.

“Porque me criaram como um humano que odiou tudo e todos?” indagou Marcos, acreditando atacar a raiz de várias de suas dúvidas.

“Não esperávamos que você se tornasse tão odiento, mas foi uma consequência interessante. À medida que inseríamos as memórias, cada situação despertava no molde da sua mente sentimentos de contrariedade e não havia razão para reprimi-los. Sua reação afrontosa ditava seu comportamento, e foi deste modo que desenhamos suas lembranças. É importante que perceba que, embora não tenham ocorrido exatamente do modo como constam de sua memória, todas as suas atitudes foram genuinamente suas, jamais interferimos em seus sentimentos e decisões. O processo de sua criação foi como jogar um jogo com uma inteligência artificial, de modo que o resultado do jogo seria ela se transformar em Marcos Tertulião. Antes de vir à nossa presença, você estava no lugar de sempre.”

“Não entendo.”

“Natural que não entenda, pois o lugar de sempre é um conceito próprio da nossa cultura. É o lugar de todas as coisas que poderiam existir, embora não necessariamente existam. As únicas coisas que estão fora do lugar de sempre são as impossíveis. O consenso quanto ao que está dentro e fora do lugar de sempre é absoluto, está em nosso instinto. Sua mente sempre foi possível, o que mudou foi apenas o fato de se ter tornado verdadeira.”

Marcos sentiu-se realmente feliz com tais revelações. Não sabia ao certo a razão, mas tal mistura de urros e guinchos traziam significados cheios de conforto. Cores novas brilharam em sua mente, como se nunca tivesse sido humano. Ser ou não ser, não fazia diferença.

Entretanto, havia impulsos que o arrastavam para sua origem. A luta apenas resultaria em longas e profundas marcas de unhas na terra. O silêncio permaneceu, pois os pensamentos que se formavam eram-lhe embaraçosos. Conseguia separar as necessidades, e bem sabia que se tratava de urgência fundamentalmente humana. Sabendo já terem notado seu constrangimento, resolveu percorrer a estrada até o fim, formulando, enfim, o inevitável questionamento:

“Como um camarada faz para transar por aqui?”

Um pouco admirado, sendo que tal emoção era apenas objeto de suspeita de Marcos, seu interlocutor devolveu outra pergunta:

“Por acaso o senhor quer ter um filho? Quer originar um bebê, é isto?”

“Não! Apenas copular.”

“Curioso. Certamente, não é uma exigência do seu corpo. Consegue entender de onde vem tal necessidade?”

Marcos pensou. Ele bem que gostaria de entender. Diziam sempre que era uma necessidade do corpo, tal como a fome, e o paralelo não era descabido, pois o tormento da abstinência merecia ser comparado à pior das privações. De todo modo, ali estava ele, em um corpo totalmente novo e diferente, com necessidades peculiares, mas ainda assim, atormentando-se para prestar serviços à espécie humana. Falou, enfim:

“Esta necessidade vem da espécie. Parece que nossa mente é arquitetada para se reproduzir. A maioria dos contatos visam, direta ou indiretamente, contribuir para a continuidade da espécie, mesmo que já existam bilhões de pessoas no mundo. Seria assim ainda que faltasse espaço para todas. A espécie é uma credora truculenta e gananciosa, e todo ser humano está obrigado diante dela. Somente depois de pagarmos mais uma prestação é que podemos retornar, tranquilamente, a nossos afazeres. Mas não chega a ser um martírio, pois a espécie oferece a recompensa do prazer, que ilumina a expectativa e imaginação, estimulando ao cumprimento do dever. Na verdade, tal prazer é tão cobiçado que posto como a própria felicidade. As pessoas, em nome do progresso e da modernidade, criaram meios de gozar sem ter de pagar à espécie. Trapaça. A justificativa é satisfazer uma necessidade humana natural, mas ingerem-se substâncias artificiais que esterilizam temporariamente, e cobre-se o caralho com uma pele falsa na hora da trepada. A espécie humana, estúpida, jamais percebe que está sendo enganada. Isto é porque ela ainda trata seus filhos como se fossem crianças, isto é, macacos. Não acompanha seus avanços e continua impondo-lhes todas as necessidades dos primitivos como se indispensáveis. É correto afirmar que o conflito mais marcante do homem é contra sua própria espécie, pois esta é mãe tirânica, e o homem, filho desonesto, que pretende obter vantagens burlando o preço da natureza. O preço mais caro é a morte, mas as pessoas não podem simplesmente aceitá-lo como bons pagadores. Tiveram que inventar Deus, para negar a morte e transmutar seu real sentido de extinção para um de passagem. E esta passagem serve como fundamento para a negação da própria vida, pois promete uma outra, livre da carne, esta sim boa e verdadeira, enquanto o corpo serve de banquete para vermes. Quer-se sair da carne, voltar-se contra a própria espécie como um filho rebelde. Mas percebo agora que é jornada vã, pois as misérias da espécie não estão na carne e sim na mente. E nem se poderia dizer que os dois se identificam, pois a mente é diferente, é um plano que precede o corpo e o subjuga, usando-o como mero veículo.”

E o estranho ser, que Marcos já começava a considerar como um igual, respondeu:

“Mesmo com séculos de observação dos humanos, jamais poderíamos elaborar tais questões desta maneira. Por mais agudo que seja o intelecto, há ainda locais insondáveis, nunca se podendo simular a mente de uma outra espécie para chegar a conclusões confiáveis. Não obstante, embora não possa auferir qualquer verdade, intuo que tais postulações são plausíveis. Para que tenha uma ideia da distância que nos separa, vou tomar emprestado sua interessante personificação da espécie para lhe esclarecer um pouco sobre a nossa. Serei breve embora completo, pois somos seres simples. Não somos originados por semelhantes como no caso dos humanos. Nós nascemos do planeta, somos formados dentro de rochas e brotamos em jazidas aos conjuntos. Desde o início, o que fazemos é caminhar sobre a dura superfície do mundo. E não há nada além disso que a espécie exija de nós, pois a superfície é impermeável e os fluidos fundamentais para a terra jamais penetrariam se não caminhássemos, aos milhões, incessantemente, sulcando o solo. Por isto nossas pernas são tão fortes e os pés tem estas garras pontiagudas. Os mais primitivos corriam com oito pernas e tinham a cabeça dura e incipiente. No início, muito esforço era desperdiçado, pois todos eram solitários e corriam de seu próprio jeito sem olhar para os lados. Mas então, um começou a notar o outro, a trocar experiências de modo rudimentar sobre onde, como e quando andar, e deste modo introduziram-se aprendizado dialético e organização. A função primordial passou a ser cumprida com maior eficiência. Os indivíduos se tornaram mais produtivos, de modo que houve excesso de mão de obra, mas a espécie foi generosa: ao invés de eliminar o excedente, buscou o equilíbrio com a gradual curvatura das costas, de modo que as pernas dianteiras se tornaram braços. Os contatos foram se tornando cada vez mais complexos, de modo que os olhos alongaram-se e a geleia do pensamento ficou mais fluida e profusa. Neste ritmo, chegamos aqui: sentimos que pertencemos à espécie ao sulcarmos a superfície, mas temos quatro braços livres e um intelecto avançado para aproveitarmos ainda mais o tempo enquanto caminhamos, desenvolvendo artes e tecnologias. Somos seres livres, mas não no sentido humano. Para nós, a liberdade é o alívio de jamais precisar escolher entre alternativas, pois todas as ações são naturais e raramente há ambiguidade ou obstáculo. Já entre os humanos, a liberdade parece ser o oposto disto. Você dizia que o ser humano trai a própria espécie e é verdade. Esta, enfim é sua liberdade e exige uma flexibilidade inata, que possibilita algo impensável para nós; o condicionamento. Por este meio, os humanos podem ser ajustados para realizar qualquer tarefa, não importa o quão desagradável e repugnante ela possa parecer a outros da mesma espécie, ou à própria espécie. Nós, por exemplo, não podemos fazer nada que contrarie nossa função primordial, apenas sendo suportável a vida enquanto cumprimos nosso papel de furar a superfície. Isto implica na impossibilidade de matar um semelhante. É o nosso postulado mais básico. Os humanos, de maneira impressionante, tem o pesado papel de perpetuar a espécie, mas conseguem convencer-se, em inúmeras ocasiões, que o melhor, para si ou para o mundo, é eliminar um semelhante por alguma razão qualquer. E conseguem executar atos que resultam em mortes, e conseguem continuar vivendo depois deles, e conseguem proteger-se das turbulências interiores e evitar o colapso. Nós não temos estes mecanismos.”

Naquela noite, Tertulião teve uma sensação desagradável. Não conseguia dormir, sem saber se estava com insônia ou se aquele corpo simplesmente não tinha tal necessidade. Passou o tempo fazendo e refazendo a única coisa que se lhe mostrava possível, que era refletir sobre a própria existência. Ao que parecia, era um objeto de estudo e nada mais. Como sempre, ele queria ser algo diferente, sem saber ao certo o quê.

No dia seguinte, foi esclarecida a finalidade de sua existência.

Uma vez mais, a porta deslizou e as duas figuras entraram, cheios de bons modos e respeito. Não houve mesuras, cumprimentos ou frases vazias. “Venha Marcos, tem algo que você precisa ver”.

E os seguiu pelos corredores, percorrendo o chão sulcado e deixando suas próprias marcas naquele mundo, as quais assemelhavam-se muito às anteriores, mas não eram idênticas, pois em sua história eram absolutamente outras coisas. Contudo, desconfiava que nem o mundo, nem qualquer das espécies saberia notar a diferença.

Os corredores eram escuros, mas era tudo muito instintivo. Mesmo que se mostrassem diversos percursos, o corpo sabia qual o correto antes que os outros dois o apontassem. Uma incompreensível diretriz o guiava, algo invisível, como sinais captados por antenas. Enfim, conseguia notar odores, eram brutos, inéditos, pareciam cheiros fortes de sujeira, mas sem causar repugnância. Eram pura terra e pedra. O ambiente mudava, mas a temperatura permanecia sempre agradável. Seguiram, em passo apressado rumo à solidez da parede, e Marcos os seguiu sem se abalar, pois sabia que era outra das portas que deslizam.

O quarto estava cheio de objetos, instrumentos e luzes discretas. Havia também, no centro, uma cama, com um deles ali deitado. Os outros dois se aproximaram com lentidão e reverência, enquanto Marcos permanecia junto à porta observando que havia nos passos muito sofrimento. “Ele está aqui, disseram ao deitado. Diante disto, Marcos foi ao leito, imitando a calma dos primeiros, na falta de alguma emoção sua para demonstrar. Enquanto ficou olhando do pé da cama, os outros dois prostraram-se aos lados do deitado, voltando a ele sua atenção. “Este é nosso amigo”, disse o da direita, cheio de pesar. “Ele está debilitado”, acrescentou o outro, hesitante.

Enfim, o deitado, movendo a cabeça entre urros e gemidos, passou a se comunicar. Vagamente, ele soava, pensou Marcos, como uma pessoa deprimida. “Meu amigo”, ele disse, olhando Tertulião bem nos olhos, “aconteceu comigo o impensável. Estava correndo pelas pedras no percurso habitual, quando deixei de sentir as pernas, perdi o equilíbrio e caí. Bati com força contra a rocha e rolei, chamando a atenção de todos que passavam. Desesperado, já sabia que havia algo errado comigo, pois aquilo não acontecia, jamais acontecia com ninguém. A tristeza foi grande quando não consegui me colocar de pé. Ainda no chão, já com a ajuda de amigos, olhei para as pernas e percebi que duas delas estavam quebradas, inúteis. Elas não resistiram.”

O da esquerda segurou firme uma das mãos do doente. Ele tinha algo a dizer, algo muito difícil, e Tertulião percebeu, surpreso, que os três pareciam na iminência de chorar. “Agora... eu... eu”, tentou o deitado “Eu não posso mais sulcar o solo”, completou com intensa humilhação, da qual os outros tentavam consolá-lo inutilmente.

Então, o da direita passou a esclarecer: “Descobrimos que ele sofre de uma imperfeição muito rara nas pernas, algo que atinge um em cada bilhão. As pernas não aguentaram a rotina de marcar as rochas e cederam, apesar de ser ainda um jovem.”

“Minha vida perdeu o sentido.”

E Marcos sentiu muita pena, assimilou com sinceridade a dor da criatura. Reconheceu nele um igual, e colocou-se a formular consolações, mas nenhuma delas parecia boa o bastante. O da direita aproximou-se de Marcos e, após o consentimento do debilitado, expresso por um olhar breve, ergueu o lençol que escondia as pernas. Imediatamente desviou o olhar, e também o da esquerda não foi forte o bastante para suportar a visão das pernas quebradas. Marcos olhou com atenção, mas não conseguiu distingui-las das pernas sãs. Não era médico e nem sequer um exemplar genuíno da espécie. O doente enfim tomou coragem para olhar, apenas para mexer a cabeça de um lado para o outro, querendo fugir daquela triste realidade. “Não tem cura. Não tem cura!” afirmou, exaltando-se. “Vou ficar imprestável para o resto da vida”. O da direita explicou : “Cada um de nós vive, em média, o equivalente a mil anos humanos.”. Era tempo demais, concordou Tertulião em silêncio. A referência a anos humanos ao invés de terrestres fazia o período parecer mais longo e desesperador.

Como bom homem, tudo que Marcos disse foi “Eu sinto muito.”Então, o infeliz teve coragem para pedir “Ajude-me.” Marcos perguntou o que poderia fazer.

“Mate-me !”, foi a resposta. E foi imediatamente apoiada pelos que se postavam graves ao lado do doente. “É o mais certo a fazer. E você é o único que pode fazê-lo”, um deles disse, mas Tertulião já não pôde perceber quem era, pois surpreso e desorientado pela macabra solicitação. Matar? Matar? Retrucou com irritação:

“Nem todos os humanos são assassinos!”

“Não estamos dizendo que sejam. Apenas pedimos que faça a coisa certa. Há um imperativo da espécie que nos impede de fazê-lo e não podemos desobedecê-lo. É impossível. Você é o único que pode matá-lo! Nem sequer é da mesma espécie!”

“Mas não podem passar a mente dele para um corpo saudável? Como fizeram comigo!”

“Isto o mataria. Não podemos matá-lo!”

Então Marcos olhou para si mesmo e para aquele que queriam que matasse. Eram parecidos o bastante, e jamais poderia fantasiar que estivesse tirando a vida de um animal. Sentiu empatia, nele nasceu a afeição de um irmão. Não poderia destruí-lo, seria tão difícil que o entendessem? Por que tinham de ser tão fatalistas? Lembrava-se de ter visto pessoas passarem pelas piores tragédias sem desistir e perder a esperança. Não era por maldade que se recusava a matar, mas sim por piedade e esperança.

“Temos algo em comum, Marcos.”disse o da direita. “Discordamos de nossa espécie, buscamos meios de burlar suas ordens. Não conseguimos matá-lo pela sua importância para o solo, mas a proibição persiste mesmo que ele não consiga mais cumprir sua função. O imperativo perdeu a razão de ser. Lutar contra a própria espécie é a sina de todos os seres que evoluem.”

Diante da insistência dos três, Marcos desistiu de entender suas razões, apenas admitindo a necessidade que o outro tinha de morrer. E embora não se sentisse confortável em ser o carrasco, passou a respeitar aquela vontade e a reconhecer que era mesmo o único capaz de realizá-la. No fundo, não passava de uma questão de solidariedade. De todo modo, sacrificaria muito de si para isto. Já pensando no próprio futuro, propôs:

“Aceito, mas quero algo em troca. Quero que cultivem a mente de uma mulher humana e coloquem em um corpo desta espécie. Quero participar do processo. Quero que ela viva comigo.”

“Mas não temos dimorfismo.”

“Não interessa! Esta é a minha condição! Quando ela estiver pronta farei a minha parte.”

Os dois olharam-se indecisos, trocando expressões que Marcos já conseguia interpretar como desanimadoras. “já gastamos quase tudo que tínhamos criando Marcos Tertulião. Agora deseja uma... fêmea? Não podemos arcar com isto. Além do mais, enquanto o elaborávamos, calculamos a conveniência de inserirmos uma mente feminina, e chegamos a conclusão de que seria arriscado demais. Uma mente humana masculina, e mesmo assim não qualquer uma delas, mas uma nos seus moldes, seria a única capaz de suportar a experiência e adaptar-se ao nosso planeta. Suponha que concordemos. Criamos uma mulher e ela logo depois se suicida ou, pior, perde a sanidade e torna-se perigosa. Estaríamos proibidos de eliminá-la. Não podemos, por favor, peça outra coisa.”

“Não me convenceram. Vocês já chegaram longe para ver este amigo morto, sei que estão dispostos a fazer um pouco mais!”

“Mas é uma hipótese que não está no lugar de sempre!”

“Como podem saber que não vai dar certo? Vocês são muito fatalistas, precisam aprender algo sobre esperança e agir sem se ater às possibilidades! Arriscar-se! E depois, não se esqueçam da dimensão do que me pedem. Acharam que minha mente humana não hesitaria diante do convite ao assassinato, é isto? Não é bem assim, será muito difícil para mim. Aquele que requer um sacrifício do outro, deve estar disposto a sacrificar-se também. Não se esqueçam ainda de que sou o único capaz de fazer o que pedem.”

O impasse durou por um tempo, mas quando o doente passou a dar razão a Marcos Tertulião, os outros se comoveram e concordaram em correr o risco.

Os dias seguintes foram emocionantes para Marcos. Descobriu muito sobre as próprias origens, todo o processo e os instrumentos, mesmo o tempo e as dificuldades das longas horas de trabalho. Realmente, tinha vindo ao mundo com muita dificuldade e devia valorizar a própria vida. Como tinham lhe contado, primeiro vinha a mente vazia, com as estruturas nuas, depois as experiências eram inseridas e a tela da máquina mostrava como a inteligência incipiente reagia. Ela seria introduzida no mesmo cotidiano de suas memórias, tratando com as mesmas pessoas, tendo os mesmos tipos de conversas. Marcos tentou disfarçar, mas emocionou-se cheio de orgulho e triunfo diante das reações dela. Teve os mesmos inimigos, os mesmos gostos e desgostos, reagiu de modo particular em algumas situações, mas as diferenças referiam-se essencialmente à feminilidade e acentuavam o desejo de tê-la ao seu lado. Não se sentiria solitário novamente, pois ela o compreenderia de maneira integral e também ficaria muito grata por finalmente ter encontrado alguém como ele. Ela o amaria, do mesmo modo que ele amava os signos que apareciam na tela da máquina.

Enfim, Marcos estava apaixonado. Não pensava em outra coisa, quase se esquecera do moço das pernas quebradas.

Quando o processo já estava avançado, um deles entrou no quarto de Marcos e falou:

“Desculpe. Não podemos continuar. Resolvemos reconsiderar nossa decisão, pois seria impossível. É um favor que fazemos a você também, acredite. Sofreria muito se prosseguíssemos com isto. Por favor amigo, pense em outro tipo de compensação.”

Aquilo não poderia ser real. Marcos mergulhou na decepção e não encontrou palavras, pois inexistem palavras contra o máximo absurdo. Balbuciou, em urros baixos cheios de incerteza e lamento: “Tá bem, vou ver outra coisa”. Seguiu-se o silêncio e Marcos foi deixado só com seus pensamentos nebulosos. A frustração foi se transformando em raiva.

Os dois estavam com o doente quando Marcos irrompeu pela porta; socou um na cabeça e ele caiu morto; o outro, Tertulião fez cair de lado com um empurrão. Ficou no chão sem dizer nada. Marcos pulou nele e disparou uma rajada de golpes com as quatro pernas, estraçalhando o corpo. O enfermo pediu:

“Mate-me! Mate-me!”

E Marcos respondeu:

“Você nunca fez nada contra mim. Não posso matá-lo.”

E foi-se.

Conheceu os corredores do planeta, socando o chão sem se satisfazer pelo trabalho prestado àquela espécie. Transbordante de insatisfação consigo e com o mundo, pôs-se a conversar com os seres que encontrava.

Milênios humanos depois, acontecia uma guerra em que os Tertuliões exibiam seu estandarte.