Monday, January 11, 2010

A MENTE HUMANA

Tertulião acordou com uma terrível enxaqueca. Não houve nada de restaurador no sono, muito pelo contrário, pesadelos corriqueiros demais para serem lembrados haviam drenado sua vitalidade e, de modo irreal, viu-se mergulhado na rotina em que toda a energia sempre ia embora. Vamos nos erguer, pensou Tertulião. Ficar sentado um tempo observando a claridade do dia resplandecer sobre a imundície da escrivaninha. Mas não conseguiu nem mover os braços, nem as pernas, nem girar os quadris na manobra usual para erguer o lado esquerdo do corpo, que era o mais ágil. Estava preso, colado à cama. Não sentia as coisas direito, não conseguia se concentrar em nada. Àquela altura, já havia se convencido de que deveria se preocupar com seu estado. Poderia gritar, mas sua solidão construída e mantida por anos era eficaz em garantir seu isolamento mesmo em casos de emergência médica. Ainda que houvesse alguém mais no apartamento, sua voz estava entalada. Diante do desagradável afunilamento das alternativas resolveu, sumariamente, empregar suas poucas energias disponíveis no desespero silencioso da alma.

Abriu e forçou os olhos, sentiu-os molhados o que já era um progresso. O mundo já não era mais escuridão; focos borrados de luz já penetravam sua vista flácida. Então, aconteceu a prova irrefutável de que havia algo muito estranho, como se tudo não passasse de um sonho ruim.

Sentiu a orientação do corpo mudar. A cama inclinou-se com ranger metálico e o pescoço logo notou a mudança, permitindo que a cabeça tombasse para baixo, como acontecia nas súbitas quedas de pressão. Mas o que significava tudo aquilo? Definitivamente, não era a cama dele, pois jamais teve esta curiosa função. Nem era algo útil para uma cama fazer.

Então, percebeu a presença de outras pessoas. “Será que este é o meu quarto?”. Pensou. E tentou pronunciar tais palavras, pois já sentia que tinha cabeça e boca. Mas foi frustrante, porque a língua parecia não estar lá. Ao abrir a boca, teve uma sensação tão desagradável quanto insólita. Primeiro uma convulsão, não muito violenta, mas bastante desagradável, depois o esôfago e a garganta se alargaram, com ruídos fundos, orgânicos e viscosos. Não havia dor, mas sua garganta parecia estar dando passagem a um limão. Então, na boca, uma gosma gelada deslizava pelas paredes de modo rápido e gelatinoso, para enfim ser excretada em pequenas convulsões rumo ao chão. “Vai estragar o carpete!”.

Seguiu-se uma sensação de alívio, um prazer estranho e inédito. Era como se estivesse mais leve, não apenas fisicamente, mas o vômito, sagrado e benfazejo, parecia tê-lo livrado de suas preocupações. O bem estar durou pouco, pois algo renovou sua já intensa desconfiança de que algo trágico para si estava em andamento: começaram a empurrar a cama para frente, como se houvesse rodinhas. Parecia um pesadelo em que o “eu” é identificado, porém não há o pleno controle das faculdades do corpo, sofrendo-se de um mutismo opressor. Mas algo indicava a realidade da desgraça; não conseguia ver-se de fora do corpo, como era comum durante o sono, no seu cinema particular.

O máximo que conseguia notar eram clarões que se seguiam e, somados a uma brisa constante, sugeriam o movimento. Então, uma parada, denunciada pela inércia do corpo inútil projetado contra amarras. A inércia estava ali, era algo familiar pelo menos. Mas não as amarras, estas causaram ainda mais estranheza e medo, afinal, eram um empecilho a sua reação, sinal de que qualquer que fosse o plano, haviam lhe reservado o papel de vítima.

Então, um giro e vários sons distinguiram-se, indicando que equipamentos estavam sendo acionados. Um jato líquido contra o seu corpo o fez debater-se, movendo o pescoço em todas as direções. Não tinha certeza, mas desconfiou que sua cabeça dava voltas completas para fugir dos jatos. O cheiro era cítrico e o sabor, ácido.

Fora o medo, estava ficando furioso. E como haveria de ser diferente? Aquilo era muito inconveniente, algo de uma impertinência sem precedente. Quem estas pessoas pensavam que eram?

Percebeu que estava gritando.

“Marcos Tertulião, acalme-se.”

Era isto mesmo que acabara de ouvir? Não. O que o outro disse, na verdade não foi dito, foi urrado de um modo estranhamente calmo em um idioma desconhecido. Mas o cérebro de Marcos compreendeu. Captou o sentido dos sons monstruosos com exatidão, chegou a desconfiar que estava delirando, mas sua fantasia se foi quando também ele pôde comunicar-se, traduzindo pensamentos claros em gritos e zumbidos selvagens que não se recordava de ter aprendido.

“Quem é você? O que está acontecendo?”

“Já está melhorando. Em breve, estará totalmente recuperado”. A isto seguiram-se outros ruídos, que Marcos supôs serem vocais, embora não formassem palavras significativas. Eram antes interjeições de alegria, o que trouxe alívio considerável, pois reduziu a possibilidade de tratar-se de ambiente hostil. A menos que não estivessem felizes pela perspectiva de seu bem estar, mas sim pela boa disposição de Marcos que possibilitava a realização de algum propósito que lhe provocasse desgosto.

“O que está acontecendo? Quem está aí?”

“Mais uma vez, Marcos, pedimos que se acalme. No momento, é impossível você entender o que está acontecendo. Mas não tema, tudo funcionou perfeitamente, e nada de ruim lhe acontecerá.”

Outra pessoa se manifestou:

“Este é o momento ideal para a informação. É melhor que ele saiba antes de recuperar a visão”.

Silêncio. Silêncio não; ruídos baixos o bastante para deixar Marcos às cegas. Mas que conversa era aquela? O corpo, o corpo precisa ser verificado, algo deve estar faltando, deve ser isto, e o desespero voltou. “Ei! Ei vocês!”

Subitamente:

“Nós acabamos de criar todos os aspectos da sua mente humana e inserimos num corpo dos nossos. Todas as estruturas mentais, bem como o conteúdo foi nossa primeira tentativa bem sucedida de reproduzir uma mente humana.”

Ouviram-se sons alarmantes de aparelhos eletrônicos.

“O espécime está instável”, urrou calmamente um dos presentes. Acrescentou:

“A mente tenta acionar sistemas que não existem neste corpo.”

Foi a última coisa que Marcos ouviu antes de apagar.

“Interessante”, prosseguiu o ser. “A mente está se protegendo de algo que parece ameaçador. O mecanismo de defesa é acionado mesmo que o corpo esteja saudável, fora da influência da mente perturbada.”

“Uma mente forte, realmente. Mas forte em sua fragilidade.”

“Exato. Tenaz em sua capacidade de fugir.”

Eram dois cientistas que conversavam diante do corpo inconsciente que abrigava a mente de Marcos Tertulião. Cada um deles tinha quatro braços e quatro pernas, couraça acinzentada e viscosa em pontos estratégicos, olhos panorâmicos em torno do encéfalo, boca discreta, porém elástica e um grande interesse no estudo do planeta Terra e seus habitantes.

Na verdade, um planeta insignificante, onde tudo que poderia ser considerado importante já havia sido descoberto. Um planeta fácil, para estudantes abordarem em seus trabalhos básicos. Contudo, tal não era a opinião dos dois cientistas que montaram Marcos. Eles desejavam ter contato real com um daquelas engraçados seres, mas não seria possível uma viagem à Terra. Muito tempo, dinheiro e a certeza do escândalo, como era a regra naquele planeta.

Marcos acordou sentindo-se enganado. De certo modo, tinha certeza de que existira um dia como um ser humano, que habitara a Terra, e desempenhara atividades maçantes. Era o que suas lembranças lhe mostravam, ainda que de um jeito vago e pobre. Mas tudo isto poderia ser mentira, já que, como disseram, havia sido criado há pouco.

Havia penumbra, mas não por culpa de seus olhos. Conseguia enxergar bem, e seu corpo funcionava em constante prazer. A vontade de viver floresceu lindamente entre os gorgolejos suspeitos de sua garganta. Pensou. Acariciou o pescoço com surpresa no tato, pois tamanha aspereza não lhe era familiar. Com a outra mão, afagou-se no peito, com a imediata sensação de que acariciava uma árvore. Com a outra mão, coçou o topo da cabeça e no lugar do cabelo havia geleia. A outra mão foi erguida diante dos olhos.

Marcos então percebeu três coisas. A primeira era que havia sido solto. A segunda era que tinha quatro mãos. A terceira, era que a cor e textura de sua pele eram grosseiras e grotescas, o que fazia com que se parecesse um monstro. Mais do que isto, ele finalmente era um monstro, de modo que os sentimentos inapropriados de uma vida poderiam ser justificados e perdoados.

Girou para o lado esquerdo, imaginando que lhe daria mais agilidade, mas a verdade era que seu corpo estava perfeitamente simétrico. Saiu da cama e sem perceber, tinha quatro pés descalços no chão, que martelavam enquanto seu corpo se movia. Olhou para baixo e viu a curva do tronco, bastante acentuada, para trás. Com a visão panorâmica, viu ao redor de si quatro pernas finas e fibrosas. Muito elegantes.

Contente com o corpo, passou ao exame do ambiente. Uma bagunça. Caminhava sobre a superfície espelhada de material desconhecido e via os traços do próprio reflexo. Um indivíduo desconhecido o olhava de volta, mas sempre tinha sido daquela maneira. Ao redor, inúmeras prateleiras sustentavam objetos cujas funções eram difíceis para um humano entender. Marcos, apesar da primeira confusão do olhar, conseguia intuir vagamente a utilidade das coisas. Tinha a ver com as necessidades do organismo estranho e, embora nunca lhe tivessem esclarecido seu próprio funcionamento, o corpo tinha um modo silencioso de preparar o intelecto para as atividades básicas de manutenção.

Apanhou um objeto no formato de cuia, e logo o colocou sobre a cabeça, na certeza de que tinha algo a ver com a geleia que ali estava. Subitamente, sentiu eletricidade por trás dos olhos e a imagem de inúmeros objetos estranhos e interessantes passaram a conversar com ele. Eles ofereciam sempre opções, ligar ou desligar, acender ou apagar, frio ou quente. Então, sentindo-se poderoso, iluminou o ambiente.

Quando eles retornassem, teriam de lidar com indagações incessantes e apaixonadas sobre a própria existência. Seria um longo dia, ou tarde, ou noite. O tempo passou sem novidade. Ele percebeu que não precisava sentar-se, pois não se sentia cansado, e de todo modo não havia cadeira no recinto.

Depois de um tempo que Marcos não poderia precisar, os dois retornaram, entrando após o deslizar surpreendente da porta oculta. “Como está se sentindo, Marcos Tertulião?”.

“Como acham que estou me sentindo?”

Os dois cientistas entreolharam-se sem muita perplexidade, aliás com total indiferença. Esta foi a conclusão de Marcos, mas a verdade, que ele ainda não tinha preparo para notar, era que o simples gesto de terem se encarado já os lançava longe da indiferença.

“Você nunca existiu no planeta Terra. Nunca ocupou um corpo humano de verdade.”

“Mas e todas estas memórias?”

“Precárias. Fatos que escolhemos como conteúdo mínimo para a mente. Mas nela há caracteres inatos, que nada tem a ver com lembranças e fantasias, pois não se tratam de conteúdos, mas sim estruturas mentais. São os nexos que organizam os conteúdos assimilados, de modo que passam a fazer sentido. Em todo universo conhecido esta dinâmica se dá de forma muito peculiar nos humanos. Então, não interessa sua experiência, mas sim as estruturas anteriores a ela, que nascem com a mente e que são, fundamentalmente, o elemento que a distingue como humana.”

Marcos tinha lembranças de uma vida relativamente longa como ser humano. Não parecia haver parentes ou amigos, apenas pessoas sem rosto que se sucediam todos os dias, repetindo frases, como se um conjunto limitado delas fosse sorteado em todas as tentativas de comunicação. A repulsa sucedia-se contra si e contra os outros.

“Porque me criaram como um humano que odiou tudo e todos?” indagou Marcos, acreditando atacar a raiz de várias de suas dúvidas.

“Não esperávamos que você se tornasse tão odiento, mas foi uma consequência interessante. À medida que inseríamos as memórias, cada situação despertava no molde da sua mente sentimentos de contrariedade e não havia razão para reprimi-los. Sua reação afrontosa ditava seu comportamento, e foi deste modo que desenhamos suas lembranças. É importante que perceba que, embora não tenham ocorrido exatamente do modo como constam de sua memória, todas as suas atitudes foram genuinamente suas, jamais interferimos em seus sentimentos e decisões. O processo de sua criação foi como jogar um jogo com uma inteligência artificial, de modo que o resultado do jogo seria ela se transformar em Marcos Tertulião. Antes de vir à nossa presença, você estava no lugar de sempre.”

“Não entendo.”

“Natural que não entenda, pois o lugar de sempre é um conceito próprio da nossa cultura. É o lugar de todas as coisas que poderiam existir, embora não necessariamente existam. As únicas coisas que estão fora do lugar de sempre são as impossíveis. O consenso quanto ao que está dentro e fora do lugar de sempre é absoluto, está em nosso instinto. Sua mente sempre foi possível, o que mudou foi apenas o fato de se ter tornado verdadeira.”

Marcos sentiu-se realmente feliz com tais revelações. Não sabia ao certo a razão, mas tal mistura de urros e guinchos traziam significados cheios de conforto. Cores novas brilharam em sua mente, como se nunca tivesse sido humano. Ser ou não ser, não fazia diferença.

Entretanto, havia impulsos que o arrastavam para sua origem. A luta apenas resultaria em longas e profundas marcas de unhas na terra. O silêncio permaneceu, pois os pensamentos que se formavam eram-lhe embaraçosos. Conseguia separar as necessidades, e bem sabia que se tratava de urgência fundamentalmente humana. Sabendo já terem notado seu constrangimento, resolveu percorrer a estrada até o fim, formulando, enfim, o inevitável questionamento:

“Como um camarada faz para transar por aqui?”

Um pouco admirado, sendo que tal emoção era apenas objeto de suspeita de Marcos, seu interlocutor devolveu outra pergunta:

“Por acaso o senhor quer ter um filho? Quer originar um bebê, é isto?”

“Não! Apenas copular.”

“Curioso. Certamente, não é uma exigência do seu corpo. Consegue entender de onde vem tal necessidade?”

Marcos pensou. Ele bem que gostaria de entender. Diziam sempre que era uma necessidade do corpo, tal como a fome, e o paralelo não era descabido, pois o tormento da abstinência merecia ser comparado à pior das privações. De todo modo, ali estava ele, em um corpo totalmente novo e diferente, com necessidades peculiares, mas ainda assim, atormentando-se para prestar serviços à espécie humana. Falou, enfim:

“Esta necessidade vem da espécie. Parece que nossa mente é arquitetada para se reproduzir. A maioria dos contatos visam, direta ou indiretamente, contribuir para a continuidade da espécie, mesmo que já existam bilhões de pessoas no mundo. Seria assim ainda que faltasse espaço para todas. A espécie é uma credora truculenta e gananciosa, e todo ser humano está obrigado diante dela. Somente depois de pagarmos mais uma prestação é que podemos retornar, tranquilamente, a nossos afazeres. Mas não chega a ser um martírio, pois a espécie oferece a recompensa do prazer, que ilumina a expectativa e imaginação, estimulando ao cumprimento do dever. Na verdade, tal prazer é tão cobiçado que posto como a própria felicidade. As pessoas, em nome do progresso e da modernidade, criaram meios de gozar sem ter de pagar à espécie. Trapaça. A justificativa é satisfazer uma necessidade humana natural, mas ingerem-se substâncias artificiais que esterilizam temporariamente, e cobre-se o caralho com uma pele falsa na hora da trepada. A espécie humana, estúpida, jamais percebe que está sendo enganada. Isto é porque ela ainda trata seus filhos como se fossem crianças, isto é, macacos. Não acompanha seus avanços e continua impondo-lhes todas as necessidades dos primitivos como se indispensáveis. É correto afirmar que o conflito mais marcante do homem é contra sua própria espécie, pois esta é mãe tirânica, e o homem, filho desonesto, que pretende obter vantagens burlando o preço da natureza. O preço mais caro é a morte, mas as pessoas não podem simplesmente aceitá-lo como bons pagadores. Tiveram que inventar Deus, para negar a morte e transmutar seu real sentido de extinção para um de passagem. E esta passagem serve como fundamento para a negação da própria vida, pois promete uma outra, livre da carne, esta sim boa e verdadeira, enquanto o corpo serve de banquete para vermes. Quer-se sair da carne, voltar-se contra a própria espécie como um filho rebelde. Mas percebo agora que é jornada vã, pois as misérias da espécie não estão na carne e sim na mente. E nem se poderia dizer que os dois se identificam, pois a mente é diferente, é um plano que precede o corpo e o subjuga, usando-o como mero veículo.”

E o estranho ser, que Marcos já começava a considerar como um igual, respondeu:

“Mesmo com séculos de observação dos humanos, jamais poderíamos elaborar tais questões desta maneira. Por mais agudo que seja o intelecto, há ainda locais insondáveis, nunca se podendo simular a mente de uma outra espécie para chegar a conclusões confiáveis. Não obstante, embora não possa auferir qualquer verdade, intuo que tais postulações são plausíveis. Para que tenha uma ideia da distância que nos separa, vou tomar emprestado sua interessante personificação da espécie para lhe esclarecer um pouco sobre a nossa. Serei breve embora completo, pois somos seres simples. Não somos originados por semelhantes como no caso dos humanos. Nós nascemos do planeta, somos formados dentro de rochas e brotamos em jazidas aos conjuntos. Desde o início, o que fazemos é caminhar sobre a dura superfície do mundo. E não há nada além disso que a espécie exija de nós, pois a superfície é impermeável e os fluidos fundamentais para a terra jamais penetrariam se não caminhássemos, aos milhões, incessantemente, sulcando o solo. Por isto nossas pernas são tão fortes e os pés tem estas garras pontiagudas. Os mais primitivos corriam com oito pernas e tinham a cabeça dura e incipiente. No início, muito esforço era desperdiçado, pois todos eram solitários e corriam de seu próprio jeito sem olhar para os lados. Mas então, um começou a notar o outro, a trocar experiências de modo rudimentar sobre onde, como e quando andar, e deste modo introduziram-se aprendizado dialético e organização. A função primordial passou a ser cumprida com maior eficiência. Os indivíduos se tornaram mais produtivos, de modo que houve excesso de mão de obra, mas a espécie foi generosa: ao invés de eliminar o excedente, buscou o equilíbrio com a gradual curvatura das costas, de modo que as pernas dianteiras se tornaram braços. Os contatos foram se tornando cada vez mais complexos, de modo que os olhos alongaram-se e a geleia do pensamento ficou mais fluida e profusa. Neste ritmo, chegamos aqui: sentimos que pertencemos à espécie ao sulcarmos a superfície, mas temos quatro braços livres e um intelecto avançado para aproveitarmos ainda mais o tempo enquanto caminhamos, desenvolvendo artes e tecnologias. Somos seres livres, mas não no sentido humano. Para nós, a liberdade é o alívio de jamais precisar escolher entre alternativas, pois todas as ações são naturais e raramente há ambiguidade ou obstáculo. Já entre os humanos, a liberdade parece ser o oposto disto. Você dizia que o ser humano trai a própria espécie e é verdade. Esta, enfim é sua liberdade e exige uma flexibilidade inata, que possibilita algo impensável para nós; o condicionamento. Por este meio, os humanos podem ser ajustados para realizar qualquer tarefa, não importa o quão desagradável e repugnante ela possa parecer a outros da mesma espécie, ou à própria espécie. Nós, por exemplo, não podemos fazer nada que contrarie nossa função primordial, apenas sendo suportável a vida enquanto cumprimos nosso papel de furar a superfície. Isto implica na impossibilidade de matar um semelhante. É o nosso postulado mais básico. Os humanos, de maneira impressionante, tem o pesado papel de perpetuar a espécie, mas conseguem convencer-se, em inúmeras ocasiões, que o melhor, para si ou para o mundo, é eliminar um semelhante por alguma razão qualquer. E conseguem executar atos que resultam em mortes, e conseguem continuar vivendo depois deles, e conseguem proteger-se das turbulências interiores e evitar o colapso. Nós não temos estes mecanismos.”

Naquela noite, Tertulião teve uma sensação desagradável. Não conseguia dormir, sem saber se estava com insônia ou se aquele corpo simplesmente não tinha tal necessidade. Passou o tempo fazendo e refazendo a única coisa que se lhe mostrava possível, que era refletir sobre a própria existência. Ao que parecia, era um objeto de estudo e nada mais. Como sempre, ele queria ser algo diferente, sem saber ao certo o quê.

No dia seguinte, foi esclarecida a finalidade de sua existência.

Uma vez mais, a porta deslizou e as duas figuras entraram, cheios de bons modos e respeito. Não houve mesuras, cumprimentos ou frases vazias. “Venha Marcos, tem algo que você precisa ver”.

E os seguiu pelos corredores, percorrendo o chão sulcado e deixando suas próprias marcas naquele mundo, as quais assemelhavam-se muito às anteriores, mas não eram idênticas, pois em sua história eram absolutamente outras coisas. Contudo, desconfiava que nem o mundo, nem qualquer das espécies saberia notar a diferença.

Os corredores eram escuros, mas era tudo muito instintivo. Mesmo que se mostrassem diversos percursos, o corpo sabia qual o correto antes que os outros dois o apontassem. Uma incompreensível diretriz o guiava, algo invisível, como sinais captados por antenas. Enfim, conseguia notar odores, eram brutos, inéditos, pareciam cheiros fortes de sujeira, mas sem causar repugnância. Eram pura terra e pedra. O ambiente mudava, mas a temperatura permanecia sempre agradável. Seguiram, em passo apressado rumo à solidez da parede, e Marcos os seguiu sem se abalar, pois sabia que era outra das portas que deslizam.

O quarto estava cheio de objetos, instrumentos e luzes discretas. Havia também, no centro, uma cama, com um deles ali deitado. Os outros dois se aproximaram com lentidão e reverência, enquanto Marcos permanecia junto à porta observando que havia nos passos muito sofrimento. “Ele está aqui, disseram ao deitado. Diante disto, Marcos foi ao leito, imitando a calma dos primeiros, na falta de alguma emoção sua para demonstrar. Enquanto ficou olhando do pé da cama, os outros dois prostraram-se aos lados do deitado, voltando a ele sua atenção. “Este é nosso amigo”, disse o da direita, cheio de pesar. “Ele está debilitado”, acrescentou o outro, hesitante.

Enfim, o deitado, movendo a cabeça entre urros e gemidos, passou a se comunicar. Vagamente, ele soava, pensou Marcos, como uma pessoa deprimida. “Meu amigo”, ele disse, olhando Tertulião bem nos olhos, “aconteceu comigo o impensável. Estava correndo pelas pedras no percurso habitual, quando deixei de sentir as pernas, perdi o equilíbrio e caí. Bati com força contra a rocha e rolei, chamando a atenção de todos que passavam. Desesperado, já sabia que havia algo errado comigo, pois aquilo não acontecia, jamais acontecia com ninguém. A tristeza foi grande quando não consegui me colocar de pé. Ainda no chão, já com a ajuda de amigos, olhei para as pernas e percebi que duas delas estavam quebradas, inúteis. Elas não resistiram.”

O da esquerda segurou firme uma das mãos do doente. Ele tinha algo a dizer, algo muito difícil, e Tertulião percebeu, surpreso, que os três pareciam na iminência de chorar. “Agora... eu... eu”, tentou o deitado “Eu não posso mais sulcar o solo”, completou com intensa humilhação, da qual os outros tentavam consolá-lo inutilmente.

Então, o da direita passou a esclarecer: “Descobrimos que ele sofre de uma imperfeição muito rara nas pernas, algo que atinge um em cada bilhão. As pernas não aguentaram a rotina de marcar as rochas e cederam, apesar de ser ainda um jovem.”

“Minha vida perdeu o sentido.”

E Marcos sentiu muita pena, assimilou com sinceridade a dor da criatura. Reconheceu nele um igual, e colocou-se a formular consolações, mas nenhuma delas parecia boa o bastante. O da direita aproximou-se de Marcos e, após o consentimento do debilitado, expresso por um olhar breve, ergueu o lençol que escondia as pernas. Imediatamente desviou o olhar, e também o da esquerda não foi forte o bastante para suportar a visão das pernas quebradas. Marcos olhou com atenção, mas não conseguiu distingui-las das pernas sãs. Não era médico e nem sequer um exemplar genuíno da espécie. O doente enfim tomou coragem para olhar, apenas para mexer a cabeça de um lado para o outro, querendo fugir daquela triste realidade. “Não tem cura. Não tem cura!” afirmou, exaltando-se. “Vou ficar imprestável para o resto da vida”. O da direita explicou : “Cada um de nós vive, em média, o equivalente a mil anos humanos.”. Era tempo demais, concordou Tertulião em silêncio. A referência a anos humanos ao invés de terrestres fazia o período parecer mais longo e desesperador.

Como bom homem, tudo que Marcos disse foi “Eu sinto muito.”Então, o infeliz teve coragem para pedir “Ajude-me.” Marcos perguntou o que poderia fazer.

“Mate-me !”, foi a resposta. E foi imediatamente apoiada pelos que se postavam graves ao lado do doente. “É o mais certo a fazer. E você é o único que pode fazê-lo”, um deles disse, mas Tertulião já não pôde perceber quem era, pois surpreso e desorientado pela macabra solicitação. Matar? Matar? Retrucou com irritação:

“Nem todos os humanos são assassinos!”

“Não estamos dizendo que sejam. Apenas pedimos que faça a coisa certa. Há um imperativo da espécie que nos impede de fazê-lo e não podemos desobedecê-lo. É impossível. Você é o único que pode matá-lo! Nem sequer é da mesma espécie!”

“Mas não podem passar a mente dele para um corpo saudável? Como fizeram comigo!”

“Isto o mataria. Não podemos matá-lo!”

Então Marcos olhou para si mesmo e para aquele que queriam que matasse. Eram parecidos o bastante, e jamais poderia fantasiar que estivesse tirando a vida de um animal. Sentiu empatia, nele nasceu a afeição de um irmão. Não poderia destruí-lo, seria tão difícil que o entendessem? Por que tinham de ser tão fatalistas? Lembrava-se de ter visto pessoas passarem pelas piores tragédias sem desistir e perder a esperança. Não era por maldade que se recusava a matar, mas sim por piedade e esperança.

“Temos algo em comum, Marcos.”disse o da direita. “Discordamos de nossa espécie, buscamos meios de burlar suas ordens. Não conseguimos matá-lo pela sua importância para o solo, mas a proibição persiste mesmo que ele não consiga mais cumprir sua função. O imperativo perdeu a razão de ser. Lutar contra a própria espécie é a sina de todos os seres que evoluem.”

Diante da insistência dos três, Marcos desistiu de entender suas razões, apenas admitindo a necessidade que o outro tinha de morrer. E embora não se sentisse confortável em ser o carrasco, passou a respeitar aquela vontade e a reconhecer que era mesmo o único capaz de realizá-la. No fundo, não passava de uma questão de solidariedade. De todo modo, sacrificaria muito de si para isto. Já pensando no próprio futuro, propôs:

“Aceito, mas quero algo em troca. Quero que cultivem a mente de uma mulher humana e coloquem em um corpo desta espécie. Quero participar do processo. Quero que ela viva comigo.”

“Mas não temos dimorfismo.”

“Não interessa! Esta é a minha condição! Quando ela estiver pronta farei a minha parte.”

Os dois olharam-se indecisos, trocando expressões que Marcos já conseguia interpretar como desanimadoras. “já gastamos quase tudo que tínhamos criando Marcos Tertulião. Agora deseja uma... fêmea? Não podemos arcar com isto. Além do mais, enquanto o elaborávamos, calculamos a conveniência de inserirmos uma mente feminina, e chegamos a conclusão de que seria arriscado demais. Uma mente humana masculina, e mesmo assim não qualquer uma delas, mas uma nos seus moldes, seria a única capaz de suportar a experiência e adaptar-se ao nosso planeta. Suponha que concordemos. Criamos uma mulher e ela logo depois se suicida ou, pior, perde a sanidade e torna-se perigosa. Estaríamos proibidos de eliminá-la. Não podemos, por favor, peça outra coisa.”

“Não me convenceram. Vocês já chegaram longe para ver este amigo morto, sei que estão dispostos a fazer um pouco mais!”

“Mas é uma hipótese que não está no lugar de sempre!”

“Como podem saber que não vai dar certo? Vocês são muito fatalistas, precisam aprender algo sobre esperança e agir sem se ater às possibilidades! Arriscar-se! E depois, não se esqueçam da dimensão do que me pedem. Acharam que minha mente humana não hesitaria diante do convite ao assassinato, é isto? Não é bem assim, será muito difícil para mim. Aquele que requer um sacrifício do outro, deve estar disposto a sacrificar-se também. Não se esqueçam ainda de que sou o único capaz de fazer o que pedem.”

O impasse durou por um tempo, mas quando o doente passou a dar razão a Marcos Tertulião, os outros se comoveram e concordaram em correr o risco.

Os dias seguintes foram emocionantes para Marcos. Descobriu muito sobre as próprias origens, todo o processo e os instrumentos, mesmo o tempo e as dificuldades das longas horas de trabalho. Realmente, tinha vindo ao mundo com muita dificuldade e devia valorizar a própria vida. Como tinham lhe contado, primeiro vinha a mente vazia, com as estruturas nuas, depois as experiências eram inseridas e a tela da máquina mostrava como a inteligência incipiente reagia. Ela seria introduzida no mesmo cotidiano de suas memórias, tratando com as mesmas pessoas, tendo os mesmos tipos de conversas. Marcos tentou disfarçar, mas emocionou-se cheio de orgulho e triunfo diante das reações dela. Teve os mesmos inimigos, os mesmos gostos e desgostos, reagiu de modo particular em algumas situações, mas as diferenças referiam-se essencialmente à feminilidade e acentuavam o desejo de tê-la ao seu lado. Não se sentiria solitário novamente, pois ela o compreenderia de maneira integral e também ficaria muito grata por finalmente ter encontrado alguém como ele. Ela o amaria, do mesmo modo que ele amava os signos que apareciam na tela da máquina.

Enfim, Marcos estava apaixonado. Não pensava em outra coisa, quase se esquecera do moço das pernas quebradas.

Quando o processo já estava avançado, um deles entrou no quarto de Marcos e falou:

“Desculpe. Não podemos continuar. Resolvemos reconsiderar nossa decisão, pois seria impossível. É um favor que fazemos a você também, acredite. Sofreria muito se prosseguíssemos com isto. Por favor amigo, pense em outro tipo de compensação.”

Aquilo não poderia ser real. Marcos mergulhou na decepção e não encontrou palavras, pois inexistem palavras contra o máximo absurdo. Balbuciou, em urros baixos cheios de incerteza e lamento: “Tá bem, vou ver outra coisa”. Seguiu-se o silêncio e Marcos foi deixado só com seus pensamentos nebulosos. A frustração foi se transformando em raiva.

Os dois estavam com o doente quando Marcos irrompeu pela porta; socou um na cabeça e ele caiu morto; o outro, Tertulião fez cair de lado com um empurrão. Ficou no chão sem dizer nada. Marcos pulou nele e disparou uma rajada de golpes com as quatro pernas, estraçalhando o corpo. O enfermo pediu:

“Mate-me! Mate-me!”

E Marcos respondeu:

“Você nunca fez nada contra mim. Não posso matá-lo.”

E foi-se.

Conheceu os corredores do planeta, socando o chão sem se satisfazer pelo trabalho prestado àquela espécie. Transbordante de insatisfação consigo e com o mundo, pôs-se a conversar com os seres que encontrava.

Milênios humanos depois, acontecia uma guerra em que os Tertuliões exibiam seu estandarte.

Saturday, June 14, 2008



A CORRENTE



O gol passou pelo quebra-molas sem diminuir a velocidade e ouviu-se um som em seu interior, que era o da suspensão maltratada. Mas ela não se importava, a única ocupante, Marta, 39 anos, cabelo desgrenhado, um olhar alucinado por trás do pára-brisa imundo, a mais louca de quatro irmãs. O carro estava bastante maltratado, era um gol daqueles antigos, quadrados, vermelho, com duas calotas faltando, duas lascadas, riscos e amassados que denotavam guerra e selvageria.

Era maio, os dias frios já se impunham há algumas semanas e o cinza se projetava como filtro da existência. O gol vencia a resistência do ar gelado acima do limite de velocidade e no rádio tocava uma canção qualquer. Não havia nenhuma emergência, mas de todo modo Marta era viciada no urgente, e tudo que fazia era temperado pela impaciência. Era como se estivesse fugindo. Primeiro da vida, mas inevitavelmente esta inconseqüente jornada a fazia resvalar em pensamentos de morte, ansiando também por escapar desta companheira macabra. Seus olhos fugiam da terra e dos vermes, mas não sabiam para onde ir, não parecia haver horizonte que lhes trouxesse conforto.

Eram quase cinco e meia da tarde e seu filho de 8 anos, Luisinho, estava prestes a sair da escola.

Marta era muito mal vista pelas outras mães, pois parecia uma louca perigosa. Não lhe deixariam fazer parte das rodinhas de mulheres queixosas que aguardavam suas crianças na porta do colégio. Ela mesma não se importava com isso, na verdade, nem havia se dado conta de que alguém fazia algum esforço para excluí-la do que quer que fosse. Marta vivia solitária em seu mundo, que era praticamente inóspito de alegrias. Tinha poucos gostos, mas não precisava deles para distrair a própria mente. Era distraída por natureza e seus grandes olhos castanhos logo desfocavam em privilégio dos pedaços de pensamentos que passavam por trás deles. Sua atenção era frágil e a tenacidade estava nos sentimentos, não nos pensamentos. É claro que as outras mães, após seus encontros em que, basicamente, reclamavam de seus maridos por todos os motivos imagináveis, chegavam em suas casas com seus filhos e, eventualmente, os aconselhavam a não brincarem com o filho da louca do carro vermelho, o estranho Luisinho.

Luisinho era bem diferente das outras crianças. Todos julgavam esta diferença como inferioridade, mas esta deletéria idéia ainda não havia penetrado em seu pequeno entendimento. Ele não era constantemente estranho, apenas se comportava de modo inesperado em algumas situações. O que causava pavor entre as mulheres do colégio era a mania dele mandar as pessoas irem tomar no cu, com fúria desconcertante, quando alguém lhe desagradava. E frequentemente se sentia contrariado pelas pessoas. Todos responsabilizavam a louca por este comportamento revoltante, mas era o menino que eles puniam, pois estava ao alcance e indefeso.

Claro que Luisinho tinha alguns amigos, pois já demonstrava ter personalidade cativante, era um pequeno líder entre as crianças. Seu andar era de uma altivez curiosa entre seus pares, mas tudo se dava de um modo diferente quando caminhava ao lado dos adultos. Seus modos se alteravam com freqüência, era imprevisível. Às vezes submisso, às vezes rebelde, ninguém ainda o havia observado o bastante para descobrir o que exatamente modulava seu modo de ser. Quando agia de modo submisso, com passos tímidos, olhar fugidio e palavrinhas trêmulas, todos aprovavam e repetiam que aquilo era ser bom. Então ele seria um menino bonzinho, alguma coisa a ver com Jesus Cristo. A mãe era a única que não cobrava bondade dele. Tudo que ela queria era atenção.

A aula de matemática estava entrando em seus minutos finais e Luisinho estava perdido em frágeis devaneios. Fantasias de criança. Ele parecia um boneco sentado, exceto por sua respiração lenta e profunda que lhe dava um pouco de humanidade. Os olhos estavam arregalados e paralisados, com o pequeno brilho trêmulo que parecia a lua refletida no lago. Para ele, ninguém mais estava no mundo. Lembrou que tudo existia quando a sirene tocou anunciando o término da aula. Viu crianças indo em direção à porta com as mochilas penduradas em um dos ombros, era algo que se repetia todos os dias. A professora não queria mais saber dele e nem de ninguém.

Luisinho guardou o lápis, a borracha e a régua no estojo, mas com serenidade. Não sentia vontade de correr para a liberdade como seus colegas, que àquela altura já deveriam estar cruzando os portões. Luisinho carregava sua mochila com naturalidade, sem empolgação.

Marta quase derrapou na última curva antes do colégio, mas ela não estava tão atrasada. A aula havia terminado há cerca de três minutos e Luisinho já esperava na calçada após um distraído descer de escadas. A mãe parou o carro no meio da rua e ficou buzinando, mais do que precisava, chegando ao ponto de desconfiarem que ela queria provocar alguém. E queria, era uma gorda, a mãe da Angélica, a gordinha da classe. Marta não ia com a cara dela e sempre buzinava quando a via. Luisinho foi correndo para o carro, abriu a porta, dobrou o banco e foi sentar lá atrás.

“Como foi a aula, filho?”

“A mesma merda de sempre, mamãe.”

“Que bom.”

A mãe estendeu uma garrafa de plástico com leite para Luisinho, ela sempre trazia. Ele bebeu.

Já passavam da cinco e meia da tarde e estava ficando difícil ver as coisas. O mundo estava ficando apagado, sem graça e o trânsito piorava a cada minuto. Os pedestres iam diminuindo e as conversas do dia de trabalho davam lugar às buzinas e aos insultos do homem moderno. As árvores balançavam ao redor das ruas, mas ninguém estava dando a mínima. O gol vermelho pegou um caminho diferente, que Luisinho ainda não conhecia. Ficou curioso com a idéia de não voltar diretamente para a solidão de sua casa.

“Onde estamos indo mamãe?”

“A mamãe vai visitar um amigo.”

Pegaram a rua principal e se afastaram do centro da cidade. A via se desobstruiu e logo estavam num bairro residencial. A noite ainda não havia se estabelecido quando Marta estacionou o gol, virou os olhos para o filho e pediu que a aguardasse.

Ela saiu e andou pela calçada sob os atentos olhos do menino, que agora estava de joelhos no banco para vê-la pelo vidro traseiro. Havia um homem encostado no muro, que começou a falar com a mãe. Depois de algumas palavras, o homem olhou na direção do carro e flagrou o menino que espionava, encontrou seus olhos e seu cabelo, que parecia uma cuia, um capacete, emergindo do banco de trás.

Luisinho o encarou com curiosidade. O menino ficou entusiasmado, seu pequeno coração batia ao ritmo de grandes sentimentos. Ele olhou para aquele homem e se perguntou se poderia ser um novo amigo. Seus olhos arderam com lágrimas sem choro, sua respiração acelerou e sua mão direita apertou as bolinhas de gude no bolso enquanto a esquerda se apoiava no banco. Sua expressão era tensa, perturbada, imprópria para uma criança. O pai de Luisinho estava morto.

Os olhos do homem enfim encontraram os de Luisinho, mas não responderam com o mesmo tipo de emoção. Ele se retraiu, escapou ao infantil convite, encabulado, desviando o rosto e recuando um passo. Marta olhou para trás para saber o que havia deslocado sua atenção, mas logo retomou um diálogo no qual se poderia notar, mesmo fora do alcance do som, seu tom suplicante, a mão direita aberta como uma garra, projetada na direção do sujeito como que implorando para que não fosse embora. Não adiantou, e de longe puderam ser vistas as palavras que ficaram engasgadas em Marta, que não puderam ser ditas e assim tentavam escapar pelos olhos e pelas ventas. Logo que ela iniciou seu retorno ao carro, Luisinho voltou a se sentar e se pôs a observar suas bolinhas de gude. Permitia que as três se movessem na palma da mão, atritando-se entre si como que para triturar o ar. Pegou uma delas, a verde, e a trouxe bem rente ao olho direito, voltando a cabeça na direção do poste, já aceso em meio à escuridão do universo. Ficou, como sempre, fascinado pelo brilho verde dentro da bolinha.

Foi interrompido quando a mãe abriu a porta e se sentou. Não disse nada, mas o menino já havia aprendido a captar sua tensão e sabia quando as coisas não estavam bem. Bastava olha-la, que era sempre como se a luz refletida nela trouxesse o contágio por um sofrimento terrível. Vinha então a febre do desespero, que fazia ranger os dentes. A frustração moldou o rosto do menino e ele sentiu suas energias se perderem, assumindo uma postura encolhida no banco.

O carro arrancou bruscamente e o menino sentiu forças o oprimindo contra o banco e lhe tirando o ar. Sua dificuldade em respirar ficou mais aparente e sua mãe finalmente percebeu pelo retrovisor os olhos do filho vermelhos e semi-cerrados. Ela ficou brava, mas não disse nada. Seguiu em direção à farmácia para comprar qualquer descongestionante, pois já estava acostumada com os problemas respiratórios do filho. Ele, por outro lado, sentia que não conseguiria se acostumar com aquilo, nem em um milhão de ataques. Buscava um modo de superá-los respirando com força, era assim que tentava se impor. Mas então tudo parecia borrado e ele perdia o equilíbrio, perdia a batalha e desistia de respirar.

Momentos depois, o carro estava estacionado e a mãe pingava o remédio em suas narinas:

“Pronto, agora você vai respirar melhor.”

Funcionou mais ou menos. Luisinho já havia aprendido que tudo na vida era mais ou menos.

O carro voltou para o centro e refletiu as luzes da cidade, e pessoas podiam ser vistas passeando e comendo churros na praça. Os de doce de leite eram os favoritos de Luisinho. Logo ele percebeu, com certo pesar, que estavam voltando para casa. As luzes iam diminuindo no sentido bairro.

Cerca de quinze minutos depois, Marta estacionou o gol na frente da casinha em que moravam. Houve silêncio por um momento curto, apenas a respiração dos dois, cada um distraído em seu mundo. Até que a mãe pediu.

“Entra, filho.”

“Vou fazer a lição de casa.”

O menino saiu, destrancou a porta de casa e entrou. Marta ficou no carro pensando no que ia fazer. A rua estava deserta, escura, esquecida pelo mundo. Não se ouviam nem insetos, nem corujas, nem carros. Ela sentiu vontade de expandir os sentidos, fuçou no porta-luvas e achou o que queria. Acendeu e começou a fumar, deixando-se escorregar no banco do motorista. Observou a fumaça dançar rente ao teto do carro, achou que cada nova baforada subia para se engalfinhar com a outra numa espécie de luta. Distraiu-se com isso, o cigarro estava acabando e ela o jogou pela janela. Tudo em volta tornou-se turvo e passou a deixar um rastro de acordo com o movimento de seu pescoço. Sentiu sono, acomodou-se de novo no banco e sua espinha se rendeu à gravidade como a de todos que desistem de testemunhar os dias e as noites. O olhar paralisou e foi perdendo intensidade, até que as pálpebras caíram. Por um momento, conseguiu perceber a escuridão, sentiu um arrepio e uma sensação de calor nos músculos.

Depois de não se sabe quanto tempo, acordou transpirando e apavorada, cercada por janelas embaçadas. Em meio a rápidos batimentos, lembrou-se de tudo que havia visto de olhos fechados dentro daquele carro. No sonho, sentiu-se mergulhada em alguma coisa no meio da escuridão, algo gelado e pegajoso que fazia ruídos nojentos quando ela se movia. Estava deitada, ergueu-se e conseguiu notar que estava coberta de lama. Olhou em volta e não conseguiu descobrir onde estava. Não era na cidade, era em algum outro lugar, um lugar que ainda assim não era estranho, que tinha certo impacto emocional sobre ela, um lugar onde já havia estado, mas apenas durante sonhos e delírios. Era um local vasto, um vale e era noite. A lua estava sempre cheia e muito maior que normal era quase uma espécie de Sol noturno, permitindo uma boa visão de tudo. A lama dava nas canelas e ela andava arrastando os pés contra a resistência do barro. Caminhou por alguns momentos e notou uma forma estranha adiante. Era um monte de argila disforme, ressecada, estranho. Mais adiante havia outro. Ela o observou e detectou marcas de dedos, como se alguém tivesse mexido naquilo antes de secar.

Continou andando e viu uma terceira forma. Esta era intrigante, claramente uma tentativa parca de retratar um ser humano, uma mulher. Estava lamentavelmente deformada, um dos braços havia caído e o rosto estava distorcido em feiúra e agonia. Marta sentiu repulsa e continuou em seu caminho. O que viu em seguida foi o que mais a chocou.

Tinha um homem trabalhando em um monte de argila, modelando-o. Ele não parecia ter muita habilidade, seus únicos instrumentos eram as mãos, grosseiras e impacientes. E ele fazia força sobre o monte de argila, quebrando arestas e ignorando detalhes. Não percebeu a presença de Marta, ou talvez tenha optado por desprezá-la. Estava esculpindo uma mulher. Depois de um tempo, o homem percebeu que o esforço era inútil, pois a argila já havia endurecido. Ele não conseguiria mais moldá-la, não poderia fazer mais nada e se afastou, andando para longe.

Marta aproximou-se da estátua com muito desconforto, alternando o olhar entre a forma e as costas daquele homem. Sentiu tontura quando percebeu que a estátua era ela própria, imperfeita e deformada. Muito mal feita, mas o rosto era inconfundível em sua agonia defeituosa, em sua ânsia pela própria destruição. Começou a chorar e correu na direção do homem cheia de fúria. Agora ela reconhecia o pai dela.

Foi quando saiu do devaneio e quase bateu a cabeça no teto do carro. As lágrimas se misturaram ao suor e ela saiu do carro longe de ser senhora de si. Cambaleou destrambelhada na direção do quartinho em que Luisinho ficava e o interrompeu no meio do dever de matemática, abraçando-o com força. Ajoelhada, abraçava Luisinho e o beijava. Apertou suas bochechas quase a ponto de machucar, puxando e repuxando. Agarrou-lhe os ombros e disse, chorando:

“Tudo vai ser diferente! Eu juro, juro que vai ser diferente meu filho.... eu juro!!!”

Por cima do ombro da mãe, Luisinho chorava e, pela janela aberta, admirava o forte brilho de uma estrela. Na verdade, a estrela, que um dia havia brilhado a anos-luz dali já estava morta. Luisinho não tinha como saber, mas sentia que estava sendo enganado.


Monday, April 28, 2008



OS ÚLTIMO RAIOS DE SOL


Amanda acordou insegura, muito mais do que estava acostumada. Ela virava na cama e conseguia identificar com precisão o motivo de seu tormento. Não chegava a ser nenhuma tragédia, mas era um incômodo, uma sensação que sempre a perseguiu, mas que, naquele momento, vinha sem rodeios, sem máscaras, para amedrontá-la. Era, na verdade, um medo que ela poderia evitar sem muito esforço. Mas ela optou por vivê-lo em sua plenitude, como um luxo, uma fraqueza proibida, uma graça dada a si mesma para sustentar um antigo vício por emoção.

Um antigo vício, que Amanda nunca quis largar. Frágil na aparência, na personalidade, no pensamento, mas ainda assim, jovial e radiante, todas as fraquezas se confundiam com sua característica delicadeza. Havia algo de atraente em sua vulnerabilidade, o que explicava a alta incidência de cafajestes em sua lista de amores passados.

Até quando insistiria no erro? Até o momento em que percebesse que errava. Talvez nem fosse necessário, talvez tudo que ela precisasse fosse um dia realmente significativo com alguém. As coisas não precisariam ser perfeitas, apenas intensas e realmente, realmente significativas. Era tudo o que ela acreditava desejar. Mas também temia que esta fosse mais uma ilusão.

As pernas permaneceram imóveis, mas seu tronco se elevou e a cabeça ficou à altura da janela, permitindo que a luz do sol lhe desse um contorno fosforescente, iluminando os fios castanhos claros que se impunham contra o ar úmido da noite que se fora. Amanda bocejou, remexendo o corpo e soltando um lento e prolongado gemido de preguiça. Alongou os músculos, enquanto olhava pela janela tentando ver o cachorro que latia lá fora. Não conseguiu.

Levantou-se de vez e ficou andando de um lado para o outro do quarto com seu pijama horrível de homem. Nada de camisola, ela sempre preferiu a camisa e a calça larga, para poder deslizar lá dentro, andar pisando na barra e arreganhar as mangas compridas, em gestos de maestra descordenada, enquanto contava alguma história interessantíssima. Mas ela não ficava mal nestes pijamas, ficava adorável, a gola em v deixava aparecer um ombro e suas formas femininas se revelavam quando o fino pijama era assoprado pelo vento, ou quando corria sem se preocupar, no esplendor de seus vinte anos.

Amanda andava de um lado para o outro todos os dias depois de acordar. Era a primeira coisa que fazia, para pensar, dizia. Pensar sobre o quê? Pensar, ora! Sobre as... coisas, a vida, qualquer coisa que fosse importante para ela na hora, tipo algum sonho, ou pesadelo, ou um compromisso daquele dia. Quando pensava em algo bom, andava com entusiasmo, sufocando risinhos com as mangas do pijama. Quando era algo preocupante, marchava séria, mordendo as unhas (até desistiu de mantê-las feitas), e com as sobrancelhas arranjadas de um modo que deixaria alguém com pena, desde que sensível e observador. Aliás, estas eram características que ela procurava por toda parte, mas falhava em encontrar. Naquela manhã, estava nitidamente taciturna, com a respiração difícil, os grandes olhos negros viajando de um canto do quarto ao outro.

Ela se sentia profundamente insegura, por um motivo nada incomum, nada mirabolante. Havia sofrido demais em seu último relacionamento e, depois de meses de uma independência fingida, começava a ser arrastada uma vez mais para aquele novelo de sensações que já apresentava uma prévia com o ataque da velha ansiedade. Tinha a crença de que tudo daria errado mais uma vez, algo que seu exagerado instinto de auto-preservação elevou à categoria de neurose, da tortura de estar sempre se preparando para o pior, embora também acreditasse ser inútil aquele tão dispendioso recrutamento de energias.

E, é claro, aquela manhã apreensiva era uma forma de seu corpo lhe avisar que as coisas estavam ficando sérias, que os laços estavam se estreitando e que os próximos eventos de sua vida poderiam vir a ocupar um lugar nas memórias mais especiais, eventos que dividem a vida e desencadeiam uma torrente de sentimentos quando rememorados. Para pessoas como Amanda, sentir saudades de um passado emocionalmente manipulado é mais que um hábito, é uma obrigação.

Com estranhas emoções regulando a garganta, Amanda tomou seu banho, trocou-se e foi pegar algo para comer.

“Amarre os sapatos Amandinha”.

E agachou-se graciosamente para amarrar os cadarços, enquanto tentava fazer com que os pés tocassem terra firme. Os olhos voltaram-se na direção dos tênis, mas os atravessaram para fixar um ponto além deles, algo que não estava ali, mas sim em sua mente. Ergueu-se e foi abrir a geladeira. Decidiu que ia tomar um leite bem gelado.

Ficou sentada em frente de casa, reparando em como tudo estava tão brilhante e quente. Era uma bela manhã de sábado em que se podiam ouvir os pássaros e batimentos cardíacos. Do fundo, bem longe e esporadicamente, vinha aquele som característico da atmosfera sendo rasgada por um carro, as rodas passando por pedrinhas e provocando estalidos, sobrepostos por alguma moto barulhenta. Amanda adorava o som dos carros à distância, era algo que mexia com sua imaginação e encontrava ressonância afetiva em suas veias, algo que ela não conseguia compreender.

Ele estava atrasado.

Sentou-se tentando evitar que sujasse a calça. Viu o jornal dobrado ali no chão, mas logo notou que não queria saber o que acontecia no resto do mundo. Suspirou e apoiou o queixo nas mãos. Repreendeu-se levemente por ser tão fresca. Ela bem sabia que não tinha problemas graves de verdade e que fazia drama. Mas por que todo aquele tédio? De onde deveria retirar motivação? É, a vida é assim mesmo, concluiu. São uns cinqüenta anos para descobrir do que você realmente precisa e outros cinqüenta para tentar conseguir. Mas a buzina do carro interrompeu as divagações.

“Vamos Amanda!”

“Tchau mãe, estou saindo!”

“Tá bom!”

Agora é hora de disfarçar o nervosismo, pensou. Sentou no banco da frente e recebeu um beijo no rosto.

“Amanda, você vai ter que me mostrar o caminho, porque eu não sei direito.”

“Claro, nem é tão longe. Segue reto na avenida, atravessa o centro, é a fazenda logo em seguida, fora da cidade, tem uma entradinha de estrada de terra, eu te mostro.”

“Legal.”

O carro seguiu, servindo como tela para os reflexos das árvores plantadas nos dois lados das ruas. As janelas estavam abertas para que o vento entrasse e bagunçasse os cabelos lisos de Amanda, que davam no ombro. Pouco foi dito durante a viagem, mas ela teve, em inúmeros momentos, a sensação de ser olhada, enquanto observava a rua e as pessoas. E isto, para ela, dizia muito, pois sempre se empenhou em captar sinais. Nesta sua ânsia, não percebia o quanto ela mesma dava bandeira de seu próprio interesse. Rafael percebia sua apreensão pelo modo como suas mãos delicadas viajavam de um lado para o outro tremendo sutilmente. Mas ele não era o tipo de sujeito que se acharia na dianteira da relação por causa destes indícios, não era alguém capaz de traçar um plano para manipular a pobre garota. Ele mesmo estava nervoso. Mantinha a cabeça voltada para a rua, mas a observava com o canto do olho, chegando a virar levemente o pescoço quando tinha a impressão dela estar perdida em pensamentos. Por mais sutil que tenha sido esta manobra, ambos sabiam o que estava acontecendo naquele carro e sabiam que estava deixando de ser implícito.

Ambos tiveram dúvidas semelhantes durante o percurso. Por uma destas coincidências curiosas, os dois refletiram sobre quão estranho é o amor. Amor? Não seria cedo demais para pensar nisto? De qualquer modo, pensaram, não era à toa que tantas e tantas pessoas encaravam o amor como um jogo: não mostre suas cartas, blefe, fique à espreita, quando a oportunidade aparecer, e logo ela aparece, ataque pra valer. Xeque-mate.

Bom, se o amor era mesmo um jogo, aqueles dois eram amadores, e não passariam da primeira rodada.

“Vou comprar um sorvete pra você.”

“Sério mesmo?”

“Vou.”

“Obrigada!”

Eles já estavam no centro. Ele guiou até a sorveteria, estacionou e saiu. Amanda ficou lá olhando para a praça. Uma praça numa manhã de sábado tem seus encantos. É algo difícil de explicar, um artista, por exemplo, não poderia registrar tudo numa tela. Você tem que estar lá para sentir e entender.

Mas porque ele não a chamou para a sorveteria?

Logo ele voltou.

“Um Sunday de morango? Como você sabia? Eu nem falei o que queria.”

“Eu via você na escola sempre tomando esse sorvete, então eu sei que é seu favorito.”

Rafael era sim um rapaz observador, mas apenas quando devidamente motivado.

Eles seguiram. Amanda sentou-se sutilmente virada na direção da janela que, aberta, deixava que o vento equilibrasse o calor dos raios de sol. Olhava para o sorvete, mexendo com a colher de modo que a calda de morango formasse um redemoinho. Girava e girava, de um modo hipnótico e, dentro de um segundo, tudo que existia eram seus pensamentos. São tempos complicados, pensou. Tempos complicados em que um sorvete não significa mais apenas um sorvete.

O som do vento entrou em seus pensamentos e ela se refrescou com mais um pouco de sorvete. Estavam no centro e as crianças andavam de mãos dadas com os pais, aproveitando os últimos dias de felicidade simples. Se ao menos eles soubessem. Amanda jogou o copo fora e acertou em cheio a lixeira, apesar do movimento do carro, do vento e da possibilidade de Rafael se ofender com aquele gesto provocador. Ela o olhou desafiadora, o queixo empinado, o olhar ardendo de travessura e as sobrancelhas tentando passar cinismo, sem conseguir. Rafael olhou sem dar qualquer mostra de preocupação, não disse nada.

O maior incômodo era a intimidade que crescia entre os dois. Apenas o desgosto poderia constrangê-la. Era disto que tinham medo. Tinham medo de tudo, inclusive de se sentirem idiotas. E isto é mais ou menos o que significa amar, superar a resistência contra ser um completo idiota.

“É ali Rafael. Tá vendo a estradinha de terra? Então, é ali.”

“Vamos lá!”

E o carro fez uma curva deixando um rastro no barro, marcas que logo seriam esquecidas. O sol ainda reinava supremo nos céus e esquentava as cabeças dos dois enquanto saíam do carro sem encontrar palavras para dizer, ou sentimentos para observar. Caminharam sem muito jeito, sentindo vontade de dar as mãos, mas achando isto muito inadequado para a situação. Era apenas uma vontade difícil de explicar, e era muito mais forte em Amanda, que contemplava, saudosamente, a fazenda de seu avô e imaginava os cavalinhos galopando com ela menina montada, numa velocidade alucinante. Olhou para Rafael e era como se visse um alienígena, alguém que destoava do cenário familiar. Ele pareceu muito menos significante para ela. Isso a desanimou um pouco, mas ela esperava recuperar todo o fascínio quando ele fizesse algo inesperado e desse um sorriso daqueles que tanto lhe agradava.

O avô saiu para recebê-los:

“Dindinha, amarre os sapatos!”

E ela agachou amarrando os cadarços enquanto os fatos de sua vida passavam por cima de sua cabeça, imagens da pequena Amanda andando de mãos dadas com o avô pelo pasto, vendo os porcos, os achando nojentos e sentindo o estômago revirar diante do inconfundível cheiro de merda. E acima daquilo tudo estava o sorriso do avô, largo e brilhante, ensinando-a que as coisas não deveriam ser levadas a sério, que qualquer dia de bosta poderia, de repente, ser o melhor da vida de uma pessoa. Por anos ela esperou que aquele sentimento voltasse, mas os dias de merda insistiam em ser nada mais que dias de merda. Pronto, um laço firme, dessa vez poderia correr e atolar o pé na lama sem que precisasse se curvar para amarrar de novo.

O vovô Rodrigues a chamava de Dindinha, o que fazia o maior sentido quando ela era uma menininha tonta. Mas agora ela tinha crescido e se tornado uma mulher interessante e independente, sentindo ser inadequado o apelido. Até pensou em repreender o avô na próxima vez em que ele a chamasse assim, mas logo desistiu da idéia diante da cristalina certeza de que ele riria na cara dela e a constrangeria com alguma piada infame, incompreensível para alguém que ainda não tivesse, no mínimo, atingido a casa dos sessenta.

Rafael não se sentiu incomodado com a presença do vovô Rodrigues. Era uma das características do velho, a de não colocar medo nos outros homens, a de ser subestimado e apunhalar seus desafetos quando estivessem desatentos. Rodrigues, até aquele momento, não havia visto em Rafael um inimigo, mas sim um jovem como ele próprio fora, o que lhe despertou suspeita. Nos últimos meses, todo moleque que via lhe lembrava a si mesmo, mas era impossível que houvesse tantos jovens Rodrigues por aí, não era fácil encontrar sujeitos tão sensacionais quanto ele circulando em gerações tão próximas. Deveria estar senil, perdendo as estribeiras, ou quem sabe, apenas precisando de mais uma consulta no oftalmologista, um novo par de óculos ou uma nova perspectiva sobre a vida. Rodrigues riu quando ouviu certa vez que deveria buscar seu eu interior. Riu porque achou uma besteira total, que negócio era aquele de “eu interior”? Eu é eu! Eu só tem um, o resto é os outros.

“E aí, seu Rodrigues, tudo bom?”

“Tudo bom, fio.”


Os três entraram para almoçar, e tinha a comida típica de fazenda. Estava deliciosa. O velho dormiu na cadeira depois da pratada descomunal e os dois ficaram sozinhos, com o dia inteiro à disposição, sem saber o que fazer com aquele tempo. Amanda resolveu, depois de alguns breves devaneios por através da tela que protegia contra mosquitos, sair para uma volta, tendo sido acompanhada por Rafael que apenas esperava ser conduzido em território estranho. À soleira da porta:

“Amanda, amarre os sapatos”.

Ela baixou-se sem hesitar enquanto olhava para frente, para o velho balanço que gingava ao vento. Parecia uma provocação, temperada pelo ar brusco da inércia do banquinho, chacoalhado em múltiplas direções. Rafael logo encontrou o que fixava a atenção da menina e para lá se dirigiu, com a clara intenção de fazer parte daquele quadro emoldurado pelas mechas castanhas de Amanda. E ela ficou parada, como leoa que observa a presa na máxima concentração, com os olhos apontando para Rafael que se balançava com uma cara forçadamente imponente, como se fosse um grande estadista entretido por planos complexos que envolviam manobras políticas arriscadas. Amanda ficou fascinada, pois logo entendera a falta de sentido daquele ato.

Os olhos de Amanda subiam e desciam lentamente em sentido inverso aos de Rafael, como se houvesse um fio ligando as pupilas e ela se ergueu no exato momento em que ele pulou do balanço. Reparando sempre em seus olhos, Rafael foi apanhar caquis e pôs-se a comer. Amanda assistia a tudo aquilo maravilhada, sem que nada precisasse ser dito. Ela estava sentindo que tudo estava em seu perfeito lugar, como se o passado se repetisse exatamente como deveria. Era como se tudo fosse revivido por meio de outra pessoa, uma pessoa que tentava encontrar um meio de entrar em seus mais caros e confusos sentimentos.

Ele apanhou a mão dela e a arrastou correndo, forçando-a a acompanhá-lo, ofegante. Veio aquele cheiro de merda, seguido pela saudação dos suínos, com olhares apagados, distantes, bestiais e sem ambigüidade. Automaticamente ela buscou os olhos de Rafael que a abordavam com um sorriso perfeito, tranqüilizador algo que ela não via há anos.

O coração de Amanda bateu mais depressa.

Mas foi desacelerando à medida em que o sol se aproximou do horizonte e avermelhou o dia. Por melhores que tivessem sido os eventos até ali, era claro que faltava algo à Amanda. Ela ainda não havia capturado a sensação que buscara por anos e estava começando a desconfiar que aquilo tudo havia morrido com sua infância. Os porcos já não eram mais os mesmos. Seu avô não era mais o mesmo. O balanço estava velho, suas correntes já até tinham sido trocadas. Até o Sol parecia um impostor. Rafael representava o desconhecido, algo do que ela tinha vontade de fugir.

Depois de uma longa caminhada, chegaram à área proibida. A adega do vovô Rodrigues. Na hora, Amanda viu do que se tratava e não teve problema nenhum em tomar a decisão de consumir meio litro de vinho. Fez uma concha com as mãos para receber a cachoeira que se acendeu em vermelho, fresca, suavemente sonora, direto para o seu espírito. Fechou os olhos e deixou que o vapor subisse de seu estômago em todas as direções, passando por seus poros e arrepiando seus fios castanhos dourados pelos últimos raios de Sol. Deixou-se cair de costas com os braços abertos, os olhos ainda fechados e a cabeça começando a rodar em um carrossel em gravidade zero. Sentiu toda leveza possível e passou a estar num mundo imaterial em que tudo se curvava à sua vontade. Abriu os olhos com a sensação perfeita de que ninguém poderia pará-la, pois estava em total sintonia com as coisas, absolutamente alerta, sem perder um segundo do que acontecia. Não conseguiu distinguir o mundo com os olhos, pois havia uma lâmina de lágrima que tudo filtrava. Apenas formas, luzes e a sensação de flutuar no oceano. Algo estava mudando. Sentiu o rosto com as mãos e ele pareceu mais palpável do que nunca, passou as mãos pelo corpo com lascívia e celebrou mentalmente sua existência.

Ela não conseguiria colocar em palavras o que começava a acontecer dentro de si, mas era claro que havia uma idéia profunda, algo silencioso que por anos orquestrou aquela experiência emocional. Com os últimos raios do sol, Amanda se desintegrou, e finalmente nasceu um ser humano.


Tuesday, November 13, 2007



O DIA EM QUE JORGE FICOU BRAVO E RESOLVEU FALAR UMAS VERDADES.


Jorge se mudou para a cidade vizinha, que era um pouco maior que a dele, aos dezoito anos de idade, para estudar agronomia. Já no segundo ano da faculdade, aconteceram coisas que jogaram a vida dele para fora dos trilhos. Isso quer dizer que a situação piorou ainda mais, pois a vida dele já era algo parecido com um trem desgovernado.

Era um rapaz que tinha sempre os olhos caídos e cheios de raiva contida, a boca que não sorria paralisada em gesso e um rosto que parecia comum nas fotografias. Apenas nas fotografias, pois, na dinâmica da conversação, a expressão de Jorge era interpretada frequentemente como escarnecedora. A excessiva sutileza com que deixava emoções vazarem passava uma falsa idéia de indiferença. Suas falas, cujos teores quase sempre estavam em desacordo com a característica entonação serena, eram tidas como manifestações do mais irritante cinismo.

Imaginando-se provocadas, as pessoas retrucavam, mas Jorge não se deixava levar, não perdia a calma. Um de seus traços marcantes era a atitude de sempre olhar para a frente, o que incluía a recusa em voltar atrás para pedir desculpas, ou explicar que havia sido mal interpretado. Seu aparente descaso com a opinião alheia causava perplexidade. Sua personalidade era um mistério.

Morava em uma pensão com mais seis estudantes e não era muito apreciado por lá. Nunca destratou ninguém, mas também não se esforçou em fazer amigos, o que levou todo mundo a pensar que ele era um daqueles cuzões que se achavam superiores. Todos com exceção de Matheus, que era alguém que ele poderia chamar de amigo. Faziam comentários atravessados, que foram se tornando cada vez mais altos e indiscretos, como que implorando por uma reação. Eles precisavam saber, Jorge era amigo ou inimigo? O que será que ele pensava sobre eles? Mas nada, ele apenas falava o essencial e passava a maior parte do tempo estudando e assistindo a aulas. Não freqüentava as festas e, ao que parecia, não corria atrás das meninas dos outros cursos que pintavam por lá.

No segundo ano, Jorge já havia se consagrado como homem sério e estudioso. Parecia ser bem mais velho. A última semana de provas estava prestes a começar, e Jorge se dirigia à pensão, com a ansiedade que sempre o atacava nestes tempos. A preocupação com as notas era uma das únicas vulnerabilidades que deixava transparecer, e isto conquistava a simpatia de alguns professores, ao mesmo tempo em que piorava sua reputação. Assim que chegou em frente ao prédio, encontrou um cara sentado próximo à porta com um violão. Era uma rodinha com dois homens e três mulheres, que Jorge não conhecia. Para falar a verdade, ele estava pouco se lixando para quem eram, a única coisa que fez com que parasse para lhes dar atenção foi o barulho que faziam:

“Bléin!

Eu prefiro SEEeeer!
Essa metamorfose ambulante!
Eu prefiro SEEer!

Bléin, bléin!”

“Pessoal, eu preciso estudar, vamos parar com o barulho, por favor”, pediu Jorge.

Os jovens sentados o olharam cheios de surpresa e extremamente incomodados com aquela audácia. “Não é possível”, seus olhos diziam, “que cara mais cabaço, ah, faça-me um favor, vai pra puta que o pariu, colega!” Mas nenhuma dessas palavras foi realmente conduzida pelo ar, apenas transitaram pelas ondas do pensamento de cada um. Sempre tem o cara que é muito bom em tomar a iniciativa em situações como esta, mas que não é bom em nenhuma outra coisa. Paulinho Roberto levantou-se com o violão e disse: “Vamos gente, vamos deixar o cara ESTUDAR” e arrastou todas as letras da palavra, enquanto entortava os olhos e fingia afetação, em raro momento de canastrice exacerbada. Deu socos com força no ombro direito de Jorge e disse: “Manda ver amigo, tira um DEZ aí pra gente!” e foram-se. Jorge ainda escutou os risinhos de uma das meninas e o outro cara falando: “Ele vai é bater punheta. Pode apostar que vai”.

Entrou, sem olhar para quantas pessoas estavam na pensão. Sentou-se à escrivaninha para estudar. Antes que pudesse começar, Matheus apareceu, amistoso como sempre. Ele era uma pessoa que entendia muito de comportamento social, não que tivesse pesquisado sobre o assunto, apenas tinha esta aptidão, e não precisava do mínimo esforço para manter uma conversa animada por horas. Também seria fácil para ele mostrar que a conversa deveria terminar, por movimentos sutis que passavam a mensagem por trás da consciência da pessoa. Então, ela sairia pensando, nossa, como é gente boa o Matheus. E quando estivesse conversando com outros, e o Matheus virasse assunto, ele diria “O Matheus? Pô, muito gente boa aquele cara!”

Talvez ele fosse o único a ter o traquejo necessário para ver além da carranca de Jorge, para estabelecer um contato e ter acesso a nuances da personalidade do amigo que ninguém havia conhecido. Nem mesmo a mãe ou o pai dele. Especialmente o pai.

Ou talvez não. Talvez Matheus fosse algo completamente diferente disso tudo.

O fato é que Matheus entrou com a mochila no quarto que dividia com Jorge. Eram três quartos, com duas pessoas em cada. “Estudando já? Tá foda né amigo, eu também vou ter que começar, a semana de provas tá aí. Mas antes, eu vou tomar um banho.” Jorge não respondeu, e foi colocando os livros na mesa, bem como suas anotações de aula, o atalho do aluno assíduo.

Cerca de vinte minutos haviam se passado quando o telefone tocou no corredor. Uma, duas, três vezes, e ninguém para atender. Jorge se levantou e foi atender, mais para fazer cessar o barulho do que para saber quem era.

Era a mãe:

“Oi Jorge, tudo bem, meu filho?”

“Oi mãe.”

“Oi mãe? Por que você não me liga mais? Não quer mais saber de mim?”

“...”

“Você tem que ligar mais aqui, meu filho. Parece que não quer nem saber se a gente tá viva ou morta”.

“...”

“E pro seu pai, tem ligado?”

“... não, mãe.”

“Claro que não né? Se tivesse, saberia que ele está no hospital há três dias!”

“No hospital?”

“É!”

“Mas... no hospital?”

“É, quer dizer que ele está doente!”

“Eu sei mãe, mas qual o problema?”

“Até parece que você não sabe.”

“O fígado?”

“Lógico!”

“...”

“Você precisa vir aqui, meu filho. Ele é seu pai, perguntou de você hoje, é melhor você vir. Você tem que visitar ele. Aproveita que é sexta-feira, pega um ônibus, não vai levar nem uma hora pra chegar.”

“Não sei não, eu tenho que estudar, já tem prova segunda-feira, mãe.”

“Nada disso, você vai vir visitar o merda do seu pai, entendeu?”

“Eu vou estudar. Se der, eu apareço.”

“Apareça!”

E desligaram. Mas ele não apareceria, pelo menos não imediatamente, não faria a vontade de sua mãe e nem de seu pai, se é que o velho realmente queria vê-lo. Se é que ele tivesse algo especial para dizer, algo que não fosse a ladainha de sempre, os confusos conselhos de uma mente deteriorada, as insinuações de que o filho deveria seguir seus caminhos tortos do álcool e mulheres fáceis.


Ele tinha provas e precisava estudar, mas seus pais, ao invés de incentivá-lo, ficavam choramingando em camas de hospital e interrompendo com ligações indesejadas de revoltante chantagem emocional. Depois de impregnado por estes pensamentos, Jorge não conseguiu mais convergir a atenção para o que quer que fosse, muito menos para os estudos, que tanto raciocínio demandavam. Deixou o livro aberto na mesma página, para retomar às cinco da manhã no sábado. Sentou-se à cama e, para a própria surpresa, estava consternado. Era um sentimento muito inapropriado na opinião dele e, se não inédito, era algo que há tempos não sentia, um súbito incômodo numa indesejável intensidade.

O pior de tudo era que não conseguia identificar os pensamentos. Imagens carregadas passavam por sua mente como carros de corrida, borrões de uma sensação opressiva, que lhe dominava. Malditos aqueles que quebram o equilíbrio trazido pelo comodismo, malditos os que mostram que no mundo existem mais coisas além daquelas que garantem o nosso conforto. Fugir não adianta, pois a fuga nunca é completa, uma vez conhecidas, essas coisas nunca vão embora.

Assim eram os nós que Jorge mantinha no seio de sua família. Esses foram os motivos pelos quais Jorge já havia desistido há anos de ser uma pessoa normal e completa.

Matheus voltou, de banho tomado, já preparado para dormir:

“Porra meu, o Otávio é um sacana, falou que ia me chamar pra balada hoje, mas me deu o cano. Eu acho que vou dormir mesmo, aí amanhã eu ligo pra... aconteceu alguma coisa?”

“...”

“Eu ouvi o telefone do chuveiro, era o Otávio?”

“Não, Matheus, era minha mãe.”

“Sua mãe? Fazia tempo que ela não ligava hein, como ela está?”

“Ligou pra avisar que meu pai tá no hospital. Tá internado por causa do fígado.”

“Hmmm, bem, e ela quer que você vá até lá e você não quer ir, certo?”

Estas palavras deixaram Jorge surpreso, marcadamente insatisfeito por terem mostrado que ele havia se tornado alguém tão previsível aos olhos de outra pessoa. Por outro lado, uma pequena satisfação gerava um conflito dentro de si, um inegável conforto oriundo da constatação de que ele era observado, o alvo da preocupação de um bom amigo. Como era gente boa o Matheus, conseguia tocar até as almas mais imaturas e ariscas.

“Sabe, não é que eu não quero ir Matheus... é que, é que...”

“Dá uma pensada nisso aí, amigo. Eu vou pegar cerveja pra gente, aí você me fala.”

Assim que Matheus saiu do quarto, a cabeça de Jorge tombou ao apoio das mãos. Não poderia chorar, mas, caramba, como tinha vontade. Por tantos e tantos anos ele havia sido o coveiro das próprias emoções, ficava totalmente perdido quando surgia a oportunidade de desenterrar seus problemas apodrecidos. Ergueu-se, era tempo de fazer o que sabia.

Matheus voltou com duas garrafas e entregou uma a Jorge. Eles começaram a beber e estava gelada e refrescante, algo para lembrar que aquela era uma noite de sexta-feira.

“Então cara, por que você não vai visitar seu pai?”

“Não é nada demais, eu preciso estudar. É só isso. As provas estão aí.”

“É só isso?”

“...”

“Bem, se quiser conversar, tamos aí.”

“Não, é só isso mesmo. Agradeço a preocupação, Matheus.”

E continuaram bebendo, em meio a conversas que transitavam entre banalidades. Matheus preferiu não insistir, embora soubesse que seria bem melhor para Jorge se ele se abrisse e discutisse os assuntos que o incomodavam. Afinal, era o que faria bem a qualquer ser humano normal neste tipo de situação.

Ficou tarde, resolveram ir dormir. Na manhã seguinte, Jorge acordou extremamente perturbado, realmente assustado pela primeira vez na vida. Ficou sentado por alguns minutos, esperando que a terrível sensação passasse, que seu coração retornasse ao ritmo quase cadavérico com que normalmente iniciava as manhãs, e que parasse de suar. Ele sentia como se não soubesse mais quem ele era. Nunca soube, mas apenas começou a pensar nisto naquele momento. O que havia acontecido?

Olhou para a cama de Matheus, ele ainda dormia. Um sono tranqüilo, uma imagem que lhe trazia uma dúvida terrível, a impressão de estar virando viado.

Talvez não se transformando. Talvez apenas se descobrindo, se deparando com uma surpresa muito desagradável sobre si mesmo. Mas ainda assim, era uma idéia difícil de aceitar, pois, pondo de lado qualquer preconceito, ele não se lembrava de ter sentido nada parecido até aquele ponto de sua vida. É verdade que raramente prestava atenção a sentimentos e sensações, e que permitia que seus pensamentos afogassem tudo em falsa racionalidade, mas lhe parecia evidente que algo tão fundamental já devesse ter se manifestado de um modo mais contundente aos próprios olhos. Talvez este tipo de raciocínio apenas valesse para as pessoas normais. Talvez ele tivesse alguma deficiência emocional, algum desajuste sério que fazia com não pudesse ter a menor noção de quem ele realmente era e do que gostava na verdade.

Também, nunca haviam perguntado. Nem ele mesmo havia, pois estava sempre ocupado não perguntando nada sobre si ou sobre os outros.

O motivo de tanto desconcerto, contudo, não era um desejo homossexual manifesto. Olhava para a outra cama, via o amigo deitado, embora ele agora se sentisse muito desconfortável em chamá-lo de amigo, mais ainda de companheiro de quarto, e sentia afeição por ele, apenas isto. Afeição, como a que se sente por um irmão, ou então pelo pai. Não, não pelo pai. Mas era só isso, nada de viadagem. E repetiu isso a si mesmo várias vezes. Nada de viadagem. Mas ainda assim, as imagens do sonho estavam vivas e era um sonho muito gay com Matheus. Mal teria coragem para encará-lo dali em diante.

E procurou não fazer isto durante todo o sábado. Esforçou-se para evitar o amigo e, nisto, acabou se abstendo de todas as outras atividades que não fossem ficar sentado estudando. Deixou de tomar banho, deixou de comer, deixou de se alimentar. Conseguiu, entretanto estudar, num esforço enorme para destruir todo o mundo à sua volta pelo estreitamento, excepcionalmente maior, da própria percepção. Em se tratando de Jorge, aquilo era muito, era a última palavra em negação. Mal poderia ouvir o que se passava ao seu redor.

Parecia um monge sentado com as costas eretas por horas, repetindo em sua mente seus mantras científicos, os dogmas que ele tentava sacralizar na vã esperança de afastar as suspeitas que tinha sobre si mesmo. Que tarefa difícil. Pelo menos ele iria bem na prova.

Três horas após o pôr do sol, o telefone tocou, e tocou de um modo insistente, pois quem estava ligando não teve o bom senso de desistir de importunar Jorge, e os outros inúteis da pensão haviam saído para fazer algo heterossexual. Não teve jeito, ele teve que saltar de seu pequeno bote salva-vidas para encarar a própria fome e a sensação de que estava imundo. Ao atender o telefone, arrumou outra distração; a cobrança por parte da mãe, que insistia na causa perdida que era Jorge, seu maldito filho.

“Então você não vem mesmo hein Jorge? QUAL O PROBLEMA?”

E Jorge, como sempre sem entender, começou a se sentir péssimo, minúsculo, inferior, um fracasso, havia um peso sobre si que o impedia de falar. Sua atenção era constrangida pelo próprio corpo, a tensão na mandíbula, a dor da coluna, vergada sob a cabeça que pesava como chumbo, as costelas que se retraíam e os músculos que perdiam o tônus. Ele se sentiu a criatura mais patética do mundo, e esse foi o primeiro julgamento sério que fez acerca de si mesmo, ultrapassando todas as próprias expectativas, que eram bem pessimistas. Quem ele era? O que ele era? Pra que ele servia? Quem gostava dele? Pensou em perguntar à mãe, mas não o fez, pois nada disso, ele acreditava, seria levado a sério por ela, que tinha outras coisas com que se preocupar, como exercer a autoridade sobre ele, exigindo que viajasse até ela sob o pretexto de encontrar seu pai, aquele homem estúpido de quem ninguém, absolutamente ninguém gostava. Uma abominação, era isso que a coisa toda era. Talvez ele fosse mesmo alguém abominável, talvez devesse mostrar isso ao mundo, expor um pouco suas trevas. Talvez não.

“...”

“Você não vai vir, seu bosta?”

“...”

E desligou. Tirou do gancho, porque sabia que ela ligaria de volta e deu um soco na parede com a mais pura, vermelha e ardida raiva. Foi bom. Quando Matheus chegou, o nervosismo de Jorge dobrou, e ele não sabia o que fazer. Impossível esconder sua inquietação, ele geralmente fazia isto posando como taciturno, pois as pessoas sempre interpretavam aquilo errado, como se ele apenas fosse uma pessoa séria, pensativa, calma. Como estavam enganadas.

“Vai cara, agora vamos encher a cara.” Disse Matheus ao ver como o amigo estava nervoso. “Eu comprei cerveja, vinho, e tem um pouco de vodca também. Vamo lá que você tá precisando. Eu também tô, porque a vida tá foda. É ou não é?” e deu uma piscada malandra e amiga. Jorge estremeceu.

Matheus, o cara que até aquele dia mais tinha conquistado a confiança e a afeição de Jorge, foi apanhar as bebidas. No começo, a situação o havia deixado muito tenso, mas aos poucos foi relaxando. Talvez não fosse tão ruim assim. Quem o poderia recriminar?

O amigo voltou com um drinque já pronto para Jorge, ele era bom nessas coisas de álcool. Estava forte, era como se vapores fossem escapar de seus poros. Uma pontada quente, um impacto que zuniu e reverberou por sua cabeça e a sensação de alívio e relaxamento. Jorge deixou-se cair na cadeira...

Acordou na cama, domingo de manhã e ficou um tempo remoendo as coisas. Pouco tempo foi necessário para que ele pudesse constatar que sua madrugada havia sido extremamente gay e que seus sonhos haviam ficado mais obscenos e cheios de detalhes. Onde aquilo ia parar? Ficou mais confuso e nervoso, aquilo tudo era um pesadelo que substituía sua vida, que já não era nenhum sonho. Daquela vez, havia sonhado que Matheus efetivamente lhe comia a bunda! Essa não!

Ficou na cama olhando para o teto, a cabeça latejando, os olhos secos ardendo na implacável vigilância de absolutamente nada e os braços pesados na cama. Jorge era todo náusea e descontentamento. Depois de um tempo, resolveu olhar as horas, apenas para confirmar a suspeita de que era tarde. Tarde demais para voltar atrás? Essa resposta o relógio jamais poderia dar.

Mas ela viria, e muito mais cedo do que Jorge poderia ter cogitado. No final, a surpresa não foi capaz de pôr fim a sua desventura, mas ele não pôde deixar de se sentir aliviado pelo rumo que as coisas tomaram.

Ele nem ao menos precisou sair da cama para que sua vida se tornasse ainda mais surreal. Tudo que ele precisou fazer foi ficar deitado, tentando criar coragem para voltar a estudar, pois uma série de acontecimentos havia irrompido pela manhã de domingo e a bomba viria parar em suas mãos em poucos minutos.

Tudo começou com um barulho de fúria, de impaciência, de alguém que se aproximava para acertar as contas sobre algo que o estava irritando profundamente. Era o som da cólera, o som das situações em que as palavras se tornam coadjuvantes de gestos agressivos e possíveis pancadas. A porta da casa se abriu com violência e Jorge ouviu os passos que, cada vez mais altos, se endereçavam indubitavelmente à sua pessoa. A porta do quarto se abriu de modo igualmente brusco, num paralelismo que fascinou, num nível muito baixo e quase imperceptível, é verdade, a mente matemática de Jorge. Olhou para a figura indignada parada à porta e não a reconheceu. Era um homem, e não havia nada de particularmente estranho nele, tirando a raiva. Jorge notou que ele segurava um telefone celular cujo modelo parecia muito o de Matheus. Logo depois, constatou que era exatamente o aparelho do colega de quarto, ausente naquele momento.

O homem se aproximou pisando firme e Jorge fez um pequeno esforço com o pescoço para encará-lo direito. Levantou as sobrancelhas em sinal de indagação, tudo bem que várias pessoas moravam na pensão e que por isso havia sempre convidados estranhos circulando por ali, mas aquilo era estranho demais. E o que o homem poderia querer com ele?

Não demorou para descobrir. O cara olhou bem para seu rosto. Afastou rapidamente a cortina para observar com mais luminosidade, e sentenciou seguro:

“É, é você mesmo. É você que é o Jorge!”

“...”

“O quê, não adianta se fazer de besta! Eu já sei de tudo tá entendendo? Você acha que eu sou trouxa?”

“... hein?”

“Olha aqui, seu viado cínico!”

Dito isto, o impertinente e misterioso homem esticou o braço e manteve o celular a alguns centímetros dos olhos de Jorge. Uma foto estava sendo exibida no painel e Jorge estava lá. De bruços, e o pior, sendo enrabado. Presumivelmente, por Matheus, que quis registrar o momento. O rosto de Jorge, de lado apoiado no travesseiro, os olhos quase fechados. Quase. Bem, aquilo explicava a terrível dor que sentia no rabo.

Um choque destes é tão grande que é dificílimo de assimilar.

Como era gente boa o Matheus.

E o homem ia passando as fotos, uma mais ultrajante do que a outra. E já aos berros:

“Seu pervertido! Fique longe do Matheus, ele é meu!”

“...!!!!”

O conflito na cabeça de Jorge era inevitável, estava mais seguro de si agora que percebia que não era viado. Só que sua revolta crescia, pois havia sido extremamente sacaneado por quem sentia enorme consideração e ainda tinha que agüentar o ciúme daquela bicha louca. Ques filhas da puta esses dois, pensou Jorge, QUES FILHA DA PUTA!:

“SEU FILHA DA PUTA!” gritou Jorge, como se estivesse sendo parido naquele momento e recebesse um tapa muito forte na bunda. “SEU FILHA DA PUTA DO CARALHO! CALA ESSA BOCA, BICHA DE MERDA! EU NEM SABIA DESSA PUTARIA TODA!” E levantou-se com rispidez, com todos os músculos do corpo preparados para um massacre. “QUEM É VOCÊ, SEU MERDA?”

“Eu sou o Otávio, namorado do Matheus!”

“AH É MESMO? É MESMO? POIS ESSE F I L H O D E U M A P U T A DO SEU NAMORADO ME EMBEBEDOU, DEVE TER ME DROGADO TAMBÉM, PORQUE EU NEM SABIA! NEM VIADO EU SOU!”

Otávio ficou sem palavras. Não era para menos, ele que estava resoluto em surpreender acabou sendo surpreendido com uma pancadaria verbal, e pelos modos de Jorge, ela poderia se tornar real. Então a reversão da surpresa foi sucedida por um medo crescente e, como costuma acontecer nestas ocasiões, Otávio procurou se acalmar, em clara manifestação de instinto de sobrevivência:

“Me desculpe... eu, eu, não deveria ter entrado aqui desse jeito,eu”

A frase foi interrompida por um soco no estômago.

Jorge nunca havia tido destaque nenhum, sempre foi visto como um zero à esquerda, e nem ele próprio se importava com a idéia. Mas aquela manhã foi histórica. Otávio dobrou-se no chão e tentou puxar o ar de volta, mas não conseguiu, não poderia nem ao menos reclamar da dor. Jorge estava completamente furioso, caminhou por cima dele, pisando com mais força do que precisaria para se apoiar, pegou a carteira e saiu batendo a porta. Em frente à pensão, formando mais um obstáculo, a rodinha de violão, empenhando-se em dar nos nervos. Lá estava Paulinho Roberto:

“Eu prefiro SEEer...
Essa metamorfose ambulante!
Do que ter aquela velha opinião formada sobre TUUUUUDOAH
Do que ter aquela velha....
O QUÊ? NÃO!

BLÉIN! CRACK! TÓIN! PLEC!


Jorge teve que interromper a música para quebrar o violão, ou talvez ele tivesse arrebentado o violão para que fosse interrompida a canção, àquela altura ele já não tinha mais certeza.

E afirmou, categórica e colericamente:

“EU DETESTO ESSA MÚSICA, SEU MERDA!”

O murmurinho das meninas foi esse:

“Ai gente, credo, que horror, nossa... ai, ele é louco, vamos sair daqui gente, ai.”

E todas saíram na hora, menos a Marcinha, que ficou olhando Jorge, ali, a poucos metros dela, primitivo, bestial, de pijama e quase babando. Ela estava visivelmente excitada, mas logo foi acompanhar as colegas.

Jorge saiu correndo e tinha destino certo; a rodoviária. Ia pegar o ônibus para poder visitar o pai no hospital, e aproveitaria a oportunidade para mandar o velho tomar no cu e a mãe, pra puta que pariu.

E ele mandou, com certeza mandou.