Saturday, June 14, 2008



A CORRENTE



O gol passou pelo quebra-molas sem diminuir a velocidade e ouviu-se um som em seu interior, que era o da suspensão maltratada. Mas ela não se importava, a única ocupante, Marta, 39 anos, cabelo desgrenhado, um olhar alucinado por trás do pára-brisa imundo, a mais louca de quatro irmãs. O carro estava bastante maltratado, era um gol daqueles antigos, quadrados, vermelho, com duas calotas faltando, duas lascadas, riscos e amassados que denotavam guerra e selvageria.

Era maio, os dias frios já se impunham há algumas semanas e o cinza se projetava como filtro da existência. O gol vencia a resistência do ar gelado acima do limite de velocidade e no rádio tocava uma canção qualquer. Não havia nenhuma emergência, mas de todo modo Marta era viciada no urgente, e tudo que fazia era temperado pela impaciência. Era como se estivesse fugindo. Primeiro da vida, mas inevitavelmente esta inconseqüente jornada a fazia resvalar em pensamentos de morte, ansiando também por escapar desta companheira macabra. Seus olhos fugiam da terra e dos vermes, mas não sabiam para onde ir, não parecia haver horizonte que lhes trouxesse conforto.

Eram quase cinco e meia da tarde e seu filho de 8 anos, Luisinho, estava prestes a sair da escola.

Marta era muito mal vista pelas outras mães, pois parecia uma louca perigosa. Não lhe deixariam fazer parte das rodinhas de mulheres queixosas que aguardavam suas crianças na porta do colégio. Ela mesma não se importava com isso, na verdade, nem havia se dado conta de que alguém fazia algum esforço para excluí-la do que quer que fosse. Marta vivia solitária em seu mundo, que era praticamente inóspito de alegrias. Tinha poucos gostos, mas não precisava deles para distrair a própria mente. Era distraída por natureza e seus grandes olhos castanhos logo desfocavam em privilégio dos pedaços de pensamentos que passavam por trás deles. Sua atenção era frágil e a tenacidade estava nos sentimentos, não nos pensamentos. É claro que as outras mães, após seus encontros em que, basicamente, reclamavam de seus maridos por todos os motivos imagináveis, chegavam em suas casas com seus filhos e, eventualmente, os aconselhavam a não brincarem com o filho da louca do carro vermelho, o estranho Luisinho.

Luisinho era bem diferente das outras crianças. Todos julgavam esta diferença como inferioridade, mas esta deletéria idéia ainda não havia penetrado em seu pequeno entendimento. Ele não era constantemente estranho, apenas se comportava de modo inesperado em algumas situações. O que causava pavor entre as mulheres do colégio era a mania dele mandar as pessoas irem tomar no cu, com fúria desconcertante, quando alguém lhe desagradava. E frequentemente se sentia contrariado pelas pessoas. Todos responsabilizavam a louca por este comportamento revoltante, mas era o menino que eles puniam, pois estava ao alcance e indefeso.

Claro que Luisinho tinha alguns amigos, pois já demonstrava ter personalidade cativante, era um pequeno líder entre as crianças. Seu andar era de uma altivez curiosa entre seus pares, mas tudo se dava de um modo diferente quando caminhava ao lado dos adultos. Seus modos se alteravam com freqüência, era imprevisível. Às vezes submisso, às vezes rebelde, ninguém ainda o havia observado o bastante para descobrir o que exatamente modulava seu modo de ser. Quando agia de modo submisso, com passos tímidos, olhar fugidio e palavrinhas trêmulas, todos aprovavam e repetiam que aquilo era ser bom. Então ele seria um menino bonzinho, alguma coisa a ver com Jesus Cristo. A mãe era a única que não cobrava bondade dele. Tudo que ela queria era atenção.

A aula de matemática estava entrando em seus minutos finais e Luisinho estava perdido em frágeis devaneios. Fantasias de criança. Ele parecia um boneco sentado, exceto por sua respiração lenta e profunda que lhe dava um pouco de humanidade. Os olhos estavam arregalados e paralisados, com o pequeno brilho trêmulo que parecia a lua refletida no lago. Para ele, ninguém mais estava no mundo. Lembrou que tudo existia quando a sirene tocou anunciando o término da aula. Viu crianças indo em direção à porta com as mochilas penduradas em um dos ombros, era algo que se repetia todos os dias. A professora não queria mais saber dele e nem de ninguém.

Luisinho guardou o lápis, a borracha e a régua no estojo, mas com serenidade. Não sentia vontade de correr para a liberdade como seus colegas, que àquela altura já deveriam estar cruzando os portões. Luisinho carregava sua mochila com naturalidade, sem empolgação.

Marta quase derrapou na última curva antes do colégio, mas ela não estava tão atrasada. A aula havia terminado há cerca de três minutos e Luisinho já esperava na calçada após um distraído descer de escadas. A mãe parou o carro no meio da rua e ficou buzinando, mais do que precisava, chegando ao ponto de desconfiarem que ela queria provocar alguém. E queria, era uma gorda, a mãe da Angélica, a gordinha da classe. Marta não ia com a cara dela e sempre buzinava quando a via. Luisinho foi correndo para o carro, abriu a porta, dobrou o banco e foi sentar lá atrás.

“Como foi a aula, filho?”

“A mesma merda de sempre, mamãe.”

“Que bom.”

A mãe estendeu uma garrafa de plástico com leite para Luisinho, ela sempre trazia. Ele bebeu.

Já passavam da cinco e meia da tarde e estava ficando difícil ver as coisas. O mundo estava ficando apagado, sem graça e o trânsito piorava a cada minuto. Os pedestres iam diminuindo e as conversas do dia de trabalho davam lugar às buzinas e aos insultos do homem moderno. As árvores balançavam ao redor das ruas, mas ninguém estava dando a mínima. O gol vermelho pegou um caminho diferente, que Luisinho ainda não conhecia. Ficou curioso com a idéia de não voltar diretamente para a solidão de sua casa.

“Onde estamos indo mamãe?”

“A mamãe vai visitar um amigo.”

Pegaram a rua principal e se afastaram do centro da cidade. A via se desobstruiu e logo estavam num bairro residencial. A noite ainda não havia se estabelecido quando Marta estacionou o gol, virou os olhos para o filho e pediu que a aguardasse.

Ela saiu e andou pela calçada sob os atentos olhos do menino, que agora estava de joelhos no banco para vê-la pelo vidro traseiro. Havia um homem encostado no muro, que começou a falar com a mãe. Depois de algumas palavras, o homem olhou na direção do carro e flagrou o menino que espionava, encontrou seus olhos e seu cabelo, que parecia uma cuia, um capacete, emergindo do banco de trás.

Luisinho o encarou com curiosidade. O menino ficou entusiasmado, seu pequeno coração batia ao ritmo de grandes sentimentos. Ele olhou para aquele homem e se perguntou se poderia ser um novo amigo. Seus olhos arderam com lágrimas sem choro, sua respiração acelerou e sua mão direita apertou as bolinhas de gude no bolso enquanto a esquerda se apoiava no banco. Sua expressão era tensa, perturbada, imprópria para uma criança. O pai de Luisinho estava morto.

Os olhos do homem enfim encontraram os de Luisinho, mas não responderam com o mesmo tipo de emoção. Ele se retraiu, escapou ao infantil convite, encabulado, desviando o rosto e recuando um passo. Marta olhou para trás para saber o que havia deslocado sua atenção, mas logo retomou um diálogo no qual se poderia notar, mesmo fora do alcance do som, seu tom suplicante, a mão direita aberta como uma garra, projetada na direção do sujeito como que implorando para que não fosse embora. Não adiantou, e de longe puderam ser vistas as palavras que ficaram engasgadas em Marta, que não puderam ser ditas e assim tentavam escapar pelos olhos e pelas ventas. Logo que ela iniciou seu retorno ao carro, Luisinho voltou a se sentar e se pôs a observar suas bolinhas de gude. Permitia que as três se movessem na palma da mão, atritando-se entre si como que para triturar o ar. Pegou uma delas, a verde, e a trouxe bem rente ao olho direito, voltando a cabeça na direção do poste, já aceso em meio à escuridão do universo. Ficou, como sempre, fascinado pelo brilho verde dentro da bolinha.

Foi interrompido quando a mãe abriu a porta e se sentou. Não disse nada, mas o menino já havia aprendido a captar sua tensão e sabia quando as coisas não estavam bem. Bastava olha-la, que era sempre como se a luz refletida nela trouxesse o contágio por um sofrimento terrível. Vinha então a febre do desespero, que fazia ranger os dentes. A frustração moldou o rosto do menino e ele sentiu suas energias se perderem, assumindo uma postura encolhida no banco.

O carro arrancou bruscamente e o menino sentiu forças o oprimindo contra o banco e lhe tirando o ar. Sua dificuldade em respirar ficou mais aparente e sua mãe finalmente percebeu pelo retrovisor os olhos do filho vermelhos e semi-cerrados. Ela ficou brava, mas não disse nada. Seguiu em direção à farmácia para comprar qualquer descongestionante, pois já estava acostumada com os problemas respiratórios do filho. Ele, por outro lado, sentia que não conseguiria se acostumar com aquilo, nem em um milhão de ataques. Buscava um modo de superá-los respirando com força, era assim que tentava se impor. Mas então tudo parecia borrado e ele perdia o equilíbrio, perdia a batalha e desistia de respirar.

Momentos depois, o carro estava estacionado e a mãe pingava o remédio em suas narinas:

“Pronto, agora você vai respirar melhor.”

Funcionou mais ou menos. Luisinho já havia aprendido que tudo na vida era mais ou menos.

O carro voltou para o centro e refletiu as luzes da cidade, e pessoas podiam ser vistas passeando e comendo churros na praça. Os de doce de leite eram os favoritos de Luisinho. Logo ele percebeu, com certo pesar, que estavam voltando para casa. As luzes iam diminuindo no sentido bairro.

Cerca de quinze minutos depois, Marta estacionou o gol na frente da casinha em que moravam. Houve silêncio por um momento curto, apenas a respiração dos dois, cada um distraído em seu mundo. Até que a mãe pediu.

“Entra, filho.”

“Vou fazer a lição de casa.”

O menino saiu, destrancou a porta de casa e entrou. Marta ficou no carro pensando no que ia fazer. A rua estava deserta, escura, esquecida pelo mundo. Não se ouviam nem insetos, nem corujas, nem carros. Ela sentiu vontade de expandir os sentidos, fuçou no porta-luvas e achou o que queria. Acendeu e começou a fumar, deixando-se escorregar no banco do motorista. Observou a fumaça dançar rente ao teto do carro, achou que cada nova baforada subia para se engalfinhar com a outra numa espécie de luta. Distraiu-se com isso, o cigarro estava acabando e ela o jogou pela janela. Tudo em volta tornou-se turvo e passou a deixar um rastro de acordo com o movimento de seu pescoço. Sentiu sono, acomodou-se de novo no banco e sua espinha se rendeu à gravidade como a de todos que desistem de testemunhar os dias e as noites. O olhar paralisou e foi perdendo intensidade, até que as pálpebras caíram. Por um momento, conseguiu perceber a escuridão, sentiu um arrepio e uma sensação de calor nos músculos.

Depois de não se sabe quanto tempo, acordou transpirando e apavorada, cercada por janelas embaçadas. Em meio a rápidos batimentos, lembrou-se de tudo que havia visto de olhos fechados dentro daquele carro. No sonho, sentiu-se mergulhada em alguma coisa no meio da escuridão, algo gelado e pegajoso que fazia ruídos nojentos quando ela se movia. Estava deitada, ergueu-se e conseguiu notar que estava coberta de lama. Olhou em volta e não conseguiu descobrir onde estava. Não era na cidade, era em algum outro lugar, um lugar que ainda assim não era estranho, que tinha certo impacto emocional sobre ela, um lugar onde já havia estado, mas apenas durante sonhos e delírios. Era um local vasto, um vale e era noite. A lua estava sempre cheia e muito maior que normal era quase uma espécie de Sol noturno, permitindo uma boa visão de tudo. A lama dava nas canelas e ela andava arrastando os pés contra a resistência do barro. Caminhou por alguns momentos e notou uma forma estranha adiante. Era um monte de argila disforme, ressecada, estranho. Mais adiante havia outro. Ela o observou e detectou marcas de dedos, como se alguém tivesse mexido naquilo antes de secar.

Continou andando e viu uma terceira forma. Esta era intrigante, claramente uma tentativa parca de retratar um ser humano, uma mulher. Estava lamentavelmente deformada, um dos braços havia caído e o rosto estava distorcido em feiúra e agonia. Marta sentiu repulsa e continuou em seu caminho. O que viu em seguida foi o que mais a chocou.

Tinha um homem trabalhando em um monte de argila, modelando-o. Ele não parecia ter muita habilidade, seus únicos instrumentos eram as mãos, grosseiras e impacientes. E ele fazia força sobre o monte de argila, quebrando arestas e ignorando detalhes. Não percebeu a presença de Marta, ou talvez tenha optado por desprezá-la. Estava esculpindo uma mulher. Depois de um tempo, o homem percebeu que o esforço era inútil, pois a argila já havia endurecido. Ele não conseguiria mais moldá-la, não poderia fazer mais nada e se afastou, andando para longe.

Marta aproximou-se da estátua com muito desconforto, alternando o olhar entre a forma e as costas daquele homem. Sentiu tontura quando percebeu que a estátua era ela própria, imperfeita e deformada. Muito mal feita, mas o rosto era inconfundível em sua agonia defeituosa, em sua ânsia pela própria destruição. Começou a chorar e correu na direção do homem cheia de fúria. Agora ela reconhecia o pai dela.

Foi quando saiu do devaneio e quase bateu a cabeça no teto do carro. As lágrimas se misturaram ao suor e ela saiu do carro longe de ser senhora de si. Cambaleou destrambelhada na direção do quartinho em que Luisinho ficava e o interrompeu no meio do dever de matemática, abraçando-o com força. Ajoelhada, abraçava Luisinho e o beijava. Apertou suas bochechas quase a ponto de machucar, puxando e repuxando. Agarrou-lhe os ombros e disse, chorando:

“Tudo vai ser diferente! Eu juro, juro que vai ser diferente meu filho.... eu juro!!!”

Por cima do ombro da mãe, Luisinho chorava e, pela janela aberta, admirava o forte brilho de uma estrela. Na verdade, a estrela, que um dia havia brilhado a anos-luz dali já estava morta. Luisinho não tinha como saber, mas sentia que estava sendo enganado.


Monday, April 28, 2008



OS ÚLTIMO RAIOS DE SOL


Amanda acordou insegura, muito mais do que estava acostumada. Ela virava na cama e conseguia identificar com precisão o motivo de seu tormento. Não chegava a ser nenhuma tragédia, mas era um incômodo, uma sensação que sempre a perseguiu, mas que, naquele momento, vinha sem rodeios, sem máscaras, para amedrontá-la. Era, na verdade, um medo que ela poderia evitar sem muito esforço. Mas ela optou por vivê-lo em sua plenitude, como um luxo, uma fraqueza proibida, uma graça dada a si mesma para sustentar um antigo vício por emoção.

Um antigo vício, que Amanda nunca quis largar. Frágil na aparência, na personalidade, no pensamento, mas ainda assim, jovial e radiante, todas as fraquezas se confundiam com sua característica delicadeza. Havia algo de atraente em sua vulnerabilidade, o que explicava a alta incidência de cafajestes em sua lista de amores passados.

Até quando insistiria no erro? Até o momento em que percebesse que errava. Talvez nem fosse necessário, talvez tudo que ela precisasse fosse um dia realmente significativo com alguém. As coisas não precisariam ser perfeitas, apenas intensas e realmente, realmente significativas. Era tudo o que ela acreditava desejar. Mas também temia que esta fosse mais uma ilusão.

As pernas permaneceram imóveis, mas seu tronco se elevou e a cabeça ficou à altura da janela, permitindo que a luz do sol lhe desse um contorno fosforescente, iluminando os fios castanhos claros que se impunham contra o ar úmido da noite que se fora. Amanda bocejou, remexendo o corpo e soltando um lento e prolongado gemido de preguiça. Alongou os músculos, enquanto olhava pela janela tentando ver o cachorro que latia lá fora. Não conseguiu.

Levantou-se de vez e ficou andando de um lado para o outro do quarto com seu pijama horrível de homem. Nada de camisola, ela sempre preferiu a camisa e a calça larga, para poder deslizar lá dentro, andar pisando na barra e arreganhar as mangas compridas, em gestos de maestra descordenada, enquanto contava alguma história interessantíssima. Mas ela não ficava mal nestes pijamas, ficava adorável, a gola em v deixava aparecer um ombro e suas formas femininas se revelavam quando o fino pijama era assoprado pelo vento, ou quando corria sem se preocupar, no esplendor de seus vinte anos.

Amanda andava de um lado para o outro todos os dias depois de acordar. Era a primeira coisa que fazia, para pensar, dizia. Pensar sobre o quê? Pensar, ora! Sobre as... coisas, a vida, qualquer coisa que fosse importante para ela na hora, tipo algum sonho, ou pesadelo, ou um compromisso daquele dia. Quando pensava em algo bom, andava com entusiasmo, sufocando risinhos com as mangas do pijama. Quando era algo preocupante, marchava séria, mordendo as unhas (até desistiu de mantê-las feitas), e com as sobrancelhas arranjadas de um modo que deixaria alguém com pena, desde que sensível e observador. Aliás, estas eram características que ela procurava por toda parte, mas falhava em encontrar. Naquela manhã, estava nitidamente taciturna, com a respiração difícil, os grandes olhos negros viajando de um canto do quarto ao outro.

Ela se sentia profundamente insegura, por um motivo nada incomum, nada mirabolante. Havia sofrido demais em seu último relacionamento e, depois de meses de uma independência fingida, começava a ser arrastada uma vez mais para aquele novelo de sensações que já apresentava uma prévia com o ataque da velha ansiedade. Tinha a crença de que tudo daria errado mais uma vez, algo que seu exagerado instinto de auto-preservação elevou à categoria de neurose, da tortura de estar sempre se preparando para o pior, embora também acreditasse ser inútil aquele tão dispendioso recrutamento de energias.

E, é claro, aquela manhã apreensiva era uma forma de seu corpo lhe avisar que as coisas estavam ficando sérias, que os laços estavam se estreitando e que os próximos eventos de sua vida poderiam vir a ocupar um lugar nas memórias mais especiais, eventos que dividem a vida e desencadeiam uma torrente de sentimentos quando rememorados. Para pessoas como Amanda, sentir saudades de um passado emocionalmente manipulado é mais que um hábito, é uma obrigação.

Com estranhas emoções regulando a garganta, Amanda tomou seu banho, trocou-se e foi pegar algo para comer.

“Amarre os sapatos Amandinha”.

E agachou-se graciosamente para amarrar os cadarços, enquanto tentava fazer com que os pés tocassem terra firme. Os olhos voltaram-se na direção dos tênis, mas os atravessaram para fixar um ponto além deles, algo que não estava ali, mas sim em sua mente. Ergueu-se e foi abrir a geladeira. Decidiu que ia tomar um leite bem gelado.

Ficou sentada em frente de casa, reparando em como tudo estava tão brilhante e quente. Era uma bela manhã de sábado em que se podiam ouvir os pássaros e batimentos cardíacos. Do fundo, bem longe e esporadicamente, vinha aquele som característico da atmosfera sendo rasgada por um carro, as rodas passando por pedrinhas e provocando estalidos, sobrepostos por alguma moto barulhenta. Amanda adorava o som dos carros à distância, era algo que mexia com sua imaginação e encontrava ressonância afetiva em suas veias, algo que ela não conseguia compreender.

Ele estava atrasado.

Sentou-se tentando evitar que sujasse a calça. Viu o jornal dobrado ali no chão, mas logo notou que não queria saber o que acontecia no resto do mundo. Suspirou e apoiou o queixo nas mãos. Repreendeu-se levemente por ser tão fresca. Ela bem sabia que não tinha problemas graves de verdade e que fazia drama. Mas por que todo aquele tédio? De onde deveria retirar motivação? É, a vida é assim mesmo, concluiu. São uns cinqüenta anos para descobrir do que você realmente precisa e outros cinqüenta para tentar conseguir. Mas a buzina do carro interrompeu as divagações.

“Vamos Amanda!”

“Tchau mãe, estou saindo!”

“Tá bom!”

Agora é hora de disfarçar o nervosismo, pensou. Sentou no banco da frente e recebeu um beijo no rosto.

“Amanda, você vai ter que me mostrar o caminho, porque eu não sei direito.”

“Claro, nem é tão longe. Segue reto na avenida, atravessa o centro, é a fazenda logo em seguida, fora da cidade, tem uma entradinha de estrada de terra, eu te mostro.”

“Legal.”

O carro seguiu, servindo como tela para os reflexos das árvores plantadas nos dois lados das ruas. As janelas estavam abertas para que o vento entrasse e bagunçasse os cabelos lisos de Amanda, que davam no ombro. Pouco foi dito durante a viagem, mas ela teve, em inúmeros momentos, a sensação de ser olhada, enquanto observava a rua e as pessoas. E isto, para ela, dizia muito, pois sempre se empenhou em captar sinais. Nesta sua ânsia, não percebia o quanto ela mesma dava bandeira de seu próprio interesse. Rafael percebia sua apreensão pelo modo como suas mãos delicadas viajavam de um lado para o outro tremendo sutilmente. Mas ele não era o tipo de sujeito que se acharia na dianteira da relação por causa destes indícios, não era alguém capaz de traçar um plano para manipular a pobre garota. Ele mesmo estava nervoso. Mantinha a cabeça voltada para a rua, mas a observava com o canto do olho, chegando a virar levemente o pescoço quando tinha a impressão dela estar perdida em pensamentos. Por mais sutil que tenha sido esta manobra, ambos sabiam o que estava acontecendo naquele carro e sabiam que estava deixando de ser implícito.

Ambos tiveram dúvidas semelhantes durante o percurso. Por uma destas coincidências curiosas, os dois refletiram sobre quão estranho é o amor. Amor? Não seria cedo demais para pensar nisto? De qualquer modo, pensaram, não era à toa que tantas e tantas pessoas encaravam o amor como um jogo: não mostre suas cartas, blefe, fique à espreita, quando a oportunidade aparecer, e logo ela aparece, ataque pra valer. Xeque-mate.

Bom, se o amor era mesmo um jogo, aqueles dois eram amadores, e não passariam da primeira rodada.

“Vou comprar um sorvete pra você.”

“Sério mesmo?”

“Vou.”

“Obrigada!”

Eles já estavam no centro. Ele guiou até a sorveteria, estacionou e saiu. Amanda ficou lá olhando para a praça. Uma praça numa manhã de sábado tem seus encantos. É algo difícil de explicar, um artista, por exemplo, não poderia registrar tudo numa tela. Você tem que estar lá para sentir e entender.

Mas porque ele não a chamou para a sorveteria?

Logo ele voltou.

“Um Sunday de morango? Como você sabia? Eu nem falei o que queria.”

“Eu via você na escola sempre tomando esse sorvete, então eu sei que é seu favorito.”

Rafael era sim um rapaz observador, mas apenas quando devidamente motivado.

Eles seguiram. Amanda sentou-se sutilmente virada na direção da janela que, aberta, deixava que o vento equilibrasse o calor dos raios de sol. Olhava para o sorvete, mexendo com a colher de modo que a calda de morango formasse um redemoinho. Girava e girava, de um modo hipnótico e, dentro de um segundo, tudo que existia eram seus pensamentos. São tempos complicados, pensou. Tempos complicados em que um sorvete não significa mais apenas um sorvete.

O som do vento entrou em seus pensamentos e ela se refrescou com mais um pouco de sorvete. Estavam no centro e as crianças andavam de mãos dadas com os pais, aproveitando os últimos dias de felicidade simples. Se ao menos eles soubessem. Amanda jogou o copo fora e acertou em cheio a lixeira, apesar do movimento do carro, do vento e da possibilidade de Rafael se ofender com aquele gesto provocador. Ela o olhou desafiadora, o queixo empinado, o olhar ardendo de travessura e as sobrancelhas tentando passar cinismo, sem conseguir. Rafael olhou sem dar qualquer mostra de preocupação, não disse nada.

O maior incômodo era a intimidade que crescia entre os dois. Apenas o desgosto poderia constrangê-la. Era disto que tinham medo. Tinham medo de tudo, inclusive de se sentirem idiotas. E isto é mais ou menos o que significa amar, superar a resistência contra ser um completo idiota.

“É ali Rafael. Tá vendo a estradinha de terra? Então, é ali.”

“Vamos lá!”

E o carro fez uma curva deixando um rastro no barro, marcas que logo seriam esquecidas. O sol ainda reinava supremo nos céus e esquentava as cabeças dos dois enquanto saíam do carro sem encontrar palavras para dizer, ou sentimentos para observar. Caminharam sem muito jeito, sentindo vontade de dar as mãos, mas achando isto muito inadequado para a situação. Era apenas uma vontade difícil de explicar, e era muito mais forte em Amanda, que contemplava, saudosamente, a fazenda de seu avô e imaginava os cavalinhos galopando com ela menina montada, numa velocidade alucinante. Olhou para Rafael e era como se visse um alienígena, alguém que destoava do cenário familiar. Ele pareceu muito menos significante para ela. Isso a desanimou um pouco, mas ela esperava recuperar todo o fascínio quando ele fizesse algo inesperado e desse um sorriso daqueles que tanto lhe agradava.

O avô saiu para recebê-los:

“Dindinha, amarre os sapatos!”

E ela agachou amarrando os cadarços enquanto os fatos de sua vida passavam por cima de sua cabeça, imagens da pequena Amanda andando de mãos dadas com o avô pelo pasto, vendo os porcos, os achando nojentos e sentindo o estômago revirar diante do inconfundível cheiro de merda. E acima daquilo tudo estava o sorriso do avô, largo e brilhante, ensinando-a que as coisas não deveriam ser levadas a sério, que qualquer dia de bosta poderia, de repente, ser o melhor da vida de uma pessoa. Por anos ela esperou que aquele sentimento voltasse, mas os dias de merda insistiam em ser nada mais que dias de merda. Pronto, um laço firme, dessa vez poderia correr e atolar o pé na lama sem que precisasse se curvar para amarrar de novo.

O vovô Rodrigues a chamava de Dindinha, o que fazia o maior sentido quando ela era uma menininha tonta. Mas agora ela tinha crescido e se tornado uma mulher interessante e independente, sentindo ser inadequado o apelido. Até pensou em repreender o avô na próxima vez em que ele a chamasse assim, mas logo desistiu da idéia diante da cristalina certeza de que ele riria na cara dela e a constrangeria com alguma piada infame, incompreensível para alguém que ainda não tivesse, no mínimo, atingido a casa dos sessenta.

Rafael não se sentiu incomodado com a presença do vovô Rodrigues. Era uma das características do velho, a de não colocar medo nos outros homens, a de ser subestimado e apunhalar seus desafetos quando estivessem desatentos. Rodrigues, até aquele momento, não havia visto em Rafael um inimigo, mas sim um jovem como ele próprio fora, o que lhe despertou suspeita. Nos últimos meses, todo moleque que via lhe lembrava a si mesmo, mas era impossível que houvesse tantos jovens Rodrigues por aí, não era fácil encontrar sujeitos tão sensacionais quanto ele circulando em gerações tão próximas. Deveria estar senil, perdendo as estribeiras, ou quem sabe, apenas precisando de mais uma consulta no oftalmologista, um novo par de óculos ou uma nova perspectiva sobre a vida. Rodrigues riu quando ouviu certa vez que deveria buscar seu eu interior. Riu porque achou uma besteira total, que negócio era aquele de “eu interior”? Eu é eu! Eu só tem um, o resto é os outros.

“E aí, seu Rodrigues, tudo bom?”

“Tudo bom, fio.”


Os três entraram para almoçar, e tinha a comida típica de fazenda. Estava deliciosa. O velho dormiu na cadeira depois da pratada descomunal e os dois ficaram sozinhos, com o dia inteiro à disposição, sem saber o que fazer com aquele tempo. Amanda resolveu, depois de alguns breves devaneios por através da tela que protegia contra mosquitos, sair para uma volta, tendo sido acompanhada por Rafael que apenas esperava ser conduzido em território estranho. À soleira da porta:

“Amanda, amarre os sapatos”.

Ela baixou-se sem hesitar enquanto olhava para frente, para o velho balanço que gingava ao vento. Parecia uma provocação, temperada pelo ar brusco da inércia do banquinho, chacoalhado em múltiplas direções. Rafael logo encontrou o que fixava a atenção da menina e para lá se dirigiu, com a clara intenção de fazer parte daquele quadro emoldurado pelas mechas castanhas de Amanda. E ela ficou parada, como leoa que observa a presa na máxima concentração, com os olhos apontando para Rafael que se balançava com uma cara forçadamente imponente, como se fosse um grande estadista entretido por planos complexos que envolviam manobras políticas arriscadas. Amanda ficou fascinada, pois logo entendera a falta de sentido daquele ato.

Os olhos de Amanda subiam e desciam lentamente em sentido inverso aos de Rafael, como se houvesse um fio ligando as pupilas e ela se ergueu no exato momento em que ele pulou do balanço. Reparando sempre em seus olhos, Rafael foi apanhar caquis e pôs-se a comer. Amanda assistia a tudo aquilo maravilhada, sem que nada precisasse ser dito. Ela estava sentindo que tudo estava em seu perfeito lugar, como se o passado se repetisse exatamente como deveria. Era como se tudo fosse revivido por meio de outra pessoa, uma pessoa que tentava encontrar um meio de entrar em seus mais caros e confusos sentimentos.

Ele apanhou a mão dela e a arrastou correndo, forçando-a a acompanhá-lo, ofegante. Veio aquele cheiro de merda, seguido pela saudação dos suínos, com olhares apagados, distantes, bestiais e sem ambigüidade. Automaticamente ela buscou os olhos de Rafael que a abordavam com um sorriso perfeito, tranqüilizador algo que ela não via há anos.

O coração de Amanda bateu mais depressa.

Mas foi desacelerando à medida em que o sol se aproximou do horizonte e avermelhou o dia. Por melhores que tivessem sido os eventos até ali, era claro que faltava algo à Amanda. Ela ainda não havia capturado a sensação que buscara por anos e estava começando a desconfiar que aquilo tudo havia morrido com sua infância. Os porcos já não eram mais os mesmos. Seu avô não era mais o mesmo. O balanço estava velho, suas correntes já até tinham sido trocadas. Até o Sol parecia um impostor. Rafael representava o desconhecido, algo do que ela tinha vontade de fugir.

Depois de uma longa caminhada, chegaram à área proibida. A adega do vovô Rodrigues. Na hora, Amanda viu do que se tratava e não teve problema nenhum em tomar a decisão de consumir meio litro de vinho. Fez uma concha com as mãos para receber a cachoeira que se acendeu em vermelho, fresca, suavemente sonora, direto para o seu espírito. Fechou os olhos e deixou que o vapor subisse de seu estômago em todas as direções, passando por seus poros e arrepiando seus fios castanhos dourados pelos últimos raios de Sol. Deixou-se cair de costas com os braços abertos, os olhos ainda fechados e a cabeça começando a rodar em um carrossel em gravidade zero. Sentiu toda leveza possível e passou a estar num mundo imaterial em que tudo se curvava à sua vontade. Abriu os olhos com a sensação perfeita de que ninguém poderia pará-la, pois estava em total sintonia com as coisas, absolutamente alerta, sem perder um segundo do que acontecia. Não conseguiu distinguir o mundo com os olhos, pois havia uma lâmina de lágrima que tudo filtrava. Apenas formas, luzes e a sensação de flutuar no oceano. Algo estava mudando. Sentiu o rosto com as mãos e ele pareceu mais palpável do que nunca, passou as mãos pelo corpo com lascívia e celebrou mentalmente sua existência.

Ela não conseguiria colocar em palavras o que começava a acontecer dentro de si, mas era claro que havia uma idéia profunda, algo silencioso que por anos orquestrou aquela experiência emocional. Com os últimos raios do sol, Amanda se desintegrou, e finalmente nasceu um ser humano.