Tuesday, November 13, 2007



O DIA EM QUE JORGE FICOU BRAVO E RESOLVEU FALAR UMAS VERDADES.


Jorge se mudou para a cidade vizinha, que era um pouco maior que a dele, aos dezoito anos de idade, para estudar agronomia. Já no segundo ano da faculdade, aconteceram coisas que jogaram a vida dele para fora dos trilhos. Isso quer dizer que a situação piorou ainda mais, pois a vida dele já era algo parecido com um trem desgovernado.

Era um rapaz que tinha sempre os olhos caídos e cheios de raiva contida, a boca que não sorria paralisada em gesso e um rosto que parecia comum nas fotografias. Apenas nas fotografias, pois, na dinâmica da conversação, a expressão de Jorge era interpretada frequentemente como escarnecedora. A excessiva sutileza com que deixava emoções vazarem passava uma falsa idéia de indiferença. Suas falas, cujos teores quase sempre estavam em desacordo com a característica entonação serena, eram tidas como manifestações do mais irritante cinismo.

Imaginando-se provocadas, as pessoas retrucavam, mas Jorge não se deixava levar, não perdia a calma. Um de seus traços marcantes era a atitude de sempre olhar para a frente, o que incluía a recusa em voltar atrás para pedir desculpas, ou explicar que havia sido mal interpretado. Seu aparente descaso com a opinião alheia causava perplexidade. Sua personalidade era um mistério.

Morava em uma pensão com mais seis estudantes e não era muito apreciado por lá. Nunca destratou ninguém, mas também não se esforçou em fazer amigos, o que levou todo mundo a pensar que ele era um daqueles cuzões que se achavam superiores. Todos com exceção de Matheus, que era alguém que ele poderia chamar de amigo. Faziam comentários atravessados, que foram se tornando cada vez mais altos e indiscretos, como que implorando por uma reação. Eles precisavam saber, Jorge era amigo ou inimigo? O que será que ele pensava sobre eles? Mas nada, ele apenas falava o essencial e passava a maior parte do tempo estudando e assistindo a aulas. Não freqüentava as festas e, ao que parecia, não corria atrás das meninas dos outros cursos que pintavam por lá.

No segundo ano, Jorge já havia se consagrado como homem sério e estudioso. Parecia ser bem mais velho. A última semana de provas estava prestes a começar, e Jorge se dirigia à pensão, com a ansiedade que sempre o atacava nestes tempos. A preocupação com as notas era uma das únicas vulnerabilidades que deixava transparecer, e isto conquistava a simpatia de alguns professores, ao mesmo tempo em que piorava sua reputação. Assim que chegou em frente ao prédio, encontrou um cara sentado próximo à porta com um violão. Era uma rodinha com dois homens e três mulheres, que Jorge não conhecia. Para falar a verdade, ele estava pouco se lixando para quem eram, a única coisa que fez com que parasse para lhes dar atenção foi o barulho que faziam:

“Bléin!

Eu prefiro SEEeeer!
Essa metamorfose ambulante!
Eu prefiro SEEer!

Bléin, bléin!”

“Pessoal, eu preciso estudar, vamos parar com o barulho, por favor”, pediu Jorge.

Os jovens sentados o olharam cheios de surpresa e extremamente incomodados com aquela audácia. “Não é possível”, seus olhos diziam, “que cara mais cabaço, ah, faça-me um favor, vai pra puta que o pariu, colega!” Mas nenhuma dessas palavras foi realmente conduzida pelo ar, apenas transitaram pelas ondas do pensamento de cada um. Sempre tem o cara que é muito bom em tomar a iniciativa em situações como esta, mas que não é bom em nenhuma outra coisa. Paulinho Roberto levantou-se com o violão e disse: “Vamos gente, vamos deixar o cara ESTUDAR” e arrastou todas as letras da palavra, enquanto entortava os olhos e fingia afetação, em raro momento de canastrice exacerbada. Deu socos com força no ombro direito de Jorge e disse: “Manda ver amigo, tira um DEZ aí pra gente!” e foram-se. Jorge ainda escutou os risinhos de uma das meninas e o outro cara falando: “Ele vai é bater punheta. Pode apostar que vai”.

Entrou, sem olhar para quantas pessoas estavam na pensão. Sentou-se à escrivaninha para estudar. Antes que pudesse começar, Matheus apareceu, amistoso como sempre. Ele era uma pessoa que entendia muito de comportamento social, não que tivesse pesquisado sobre o assunto, apenas tinha esta aptidão, e não precisava do mínimo esforço para manter uma conversa animada por horas. Também seria fácil para ele mostrar que a conversa deveria terminar, por movimentos sutis que passavam a mensagem por trás da consciência da pessoa. Então, ela sairia pensando, nossa, como é gente boa o Matheus. E quando estivesse conversando com outros, e o Matheus virasse assunto, ele diria “O Matheus? Pô, muito gente boa aquele cara!”

Talvez ele fosse o único a ter o traquejo necessário para ver além da carranca de Jorge, para estabelecer um contato e ter acesso a nuances da personalidade do amigo que ninguém havia conhecido. Nem mesmo a mãe ou o pai dele. Especialmente o pai.

Ou talvez não. Talvez Matheus fosse algo completamente diferente disso tudo.

O fato é que Matheus entrou com a mochila no quarto que dividia com Jorge. Eram três quartos, com duas pessoas em cada. “Estudando já? Tá foda né amigo, eu também vou ter que começar, a semana de provas tá aí. Mas antes, eu vou tomar um banho.” Jorge não respondeu, e foi colocando os livros na mesa, bem como suas anotações de aula, o atalho do aluno assíduo.

Cerca de vinte minutos haviam se passado quando o telefone tocou no corredor. Uma, duas, três vezes, e ninguém para atender. Jorge se levantou e foi atender, mais para fazer cessar o barulho do que para saber quem era.

Era a mãe:

“Oi Jorge, tudo bem, meu filho?”

“Oi mãe.”

“Oi mãe? Por que você não me liga mais? Não quer mais saber de mim?”

“...”

“Você tem que ligar mais aqui, meu filho. Parece que não quer nem saber se a gente tá viva ou morta”.

“...”

“E pro seu pai, tem ligado?”

“... não, mãe.”

“Claro que não né? Se tivesse, saberia que ele está no hospital há três dias!”

“No hospital?”

“É!”

“Mas... no hospital?”

“É, quer dizer que ele está doente!”

“Eu sei mãe, mas qual o problema?”

“Até parece que você não sabe.”

“O fígado?”

“Lógico!”

“...”

“Você precisa vir aqui, meu filho. Ele é seu pai, perguntou de você hoje, é melhor você vir. Você tem que visitar ele. Aproveita que é sexta-feira, pega um ônibus, não vai levar nem uma hora pra chegar.”

“Não sei não, eu tenho que estudar, já tem prova segunda-feira, mãe.”

“Nada disso, você vai vir visitar o merda do seu pai, entendeu?”

“Eu vou estudar. Se der, eu apareço.”

“Apareça!”

E desligaram. Mas ele não apareceria, pelo menos não imediatamente, não faria a vontade de sua mãe e nem de seu pai, se é que o velho realmente queria vê-lo. Se é que ele tivesse algo especial para dizer, algo que não fosse a ladainha de sempre, os confusos conselhos de uma mente deteriorada, as insinuações de que o filho deveria seguir seus caminhos tortos do álcool e mulheres fáceis.


Ele tinha provas e precisava estudar, mas seus pais, ao invés de incentivá-lo, ficavam choramingando em camas de hospital e interrompendo com ligações indesejadas de revoltante chantagem emocional. Depois de impregnado por estes pensamentos, Jorge não conseguiu mais convergir a atenção para o que quer que fosse, muito menos para os estudos, que tanto raciocínio demandavam. Deixou o livro aberto na mesma página, para retomar às cinco da manhã no sábado. Sentou-se à cama e, para a própria surpresa, estava consternado. Era um sentimento muito inapropriado na opinião dele e, se não inédito, era algo que há tempos não sentia, um súbito incômodo numa indesejável intensidade.

O pior de tudo era que não conseguia identificar os pensamentos. Imagens carregadas passavam por sua mente como carros de corrida, borrões de uma sensação opressiva, que lhe dominava. Malditos aqueles que quebram o equilíbrio trazido pelo comodismo, malditos os que mostram que no mundo existem mais coisas além daquelas que garantem o nosso conforto. Fugir não adianta, pois a fuga nunca é completa, uma vez conhecidas, essas coisas nunca vão embora.

Assim eram os nós que Jorge mantinha no seio de sua família. Esses foram os motivos pelos quais Jorge já havia desistido há anos de ser uma pessoa normal e completa.

Matheus voltou, de banho tomado, já preparado para dormir:

“Porra meu, o Otávio é um sacana, falou que ia me chamar pra balada hoje, mas me deu o cano. Eu acho que vou dormir mesmo, aí amanhã eu ligo pra... aconteceu alguma coisa?”

“...”

“Eu ouvi o telefone do chuveiro, era o Otávio?”

“Não, Matheus, era minha mãe.”

“Sua mãe? Fazia tempo que ela não ligava hein, como ela está?”

“Ligou pra avisar que meu pai tá no hospital. Tá internado por causa do fígado.”

“Hmmm, bem, e ela quer que você vá até lá e você não quer ir, certo?”

Estas palavras deixaram Jorge surpreso, marcadamente insatisfeito por terem mostrado que ele havia se tornado alguém tão previsível aos olhos de outra pessoa. Por outro lado, uma pequena satisfação gerava um conflito dentro de si, um inegável conforto oriundo da constatação de que ele era observado, o alvo da preocupação de um bom amigo. Como era gente boa o Matheus, conseguia tocar até as almas mais imaturas e ariscas.

“Sabe, não é que eu não quero ir Matheus... é que, é que...”

“Dá uma pensada nisso aí, amigo. Eu vou pegar cerveja pra gente, aí você me fala.”

Assim que Matheus saiu do quarto, a cabeça de Jorge tombou ao apoio das mãos. Não poderia chorar, mas, caramba, como tinha vontade. Por tantos e tantos anos ele havia sido o coveiro das próprias emoções, ficava totalmente perdido quando surgia a oportunidade de desenterrar seus problemas apodrecidos. Ergueu-se, era tempo de fazer o que sabia.

Matheus voltou com duas garrafas e entregou uma a Jorge. Eles começaram a beber e estava gelada e refrescante, algo para lembrar que aquela era uma noite de sexta-feira.

“Então cara, por que você não vai visitar seu pai?”

“Não é nada demais, eu preciso estudar. É só isso. As provas estão aí.”

“É só isso?”

“...”

“Bem, se quiser conversar, tamos aí.”

“Não, é só isso mesmo. Agradeço a preocupação, Matheus.”

E continuaram bebendo, em meio a conversas que transitavam entre banalidades. Matheus preferiu não insistir, embora soubesse que seria bem melhor para Jorge se ele se abrisse e discutisse os assuntos que o incomodavam. Afinal, era o que faria bem a qualquer ser humano normal neste tipo de situação.

Ficou tarde, resolveram ir dormir. Na manhã seguinte, Jorge acordou extremamente perturbado, realmente assustado pela primeira vez na vida. Ficou sentado por alguns minutos, esperando que a terrível sensação passasse, que seu coração retornasse ao ritmo quase cadavérico com que normalmente iniciava as manhãs, e que parasse de suar. Ele sentia como se não soubesse mais quem ele era. Nunca soube, mas apenas começou a pensar nisto naquele momento. O que havia acontecido?

Olhou para a cama de Matheus, ele ainda dormia. Um sono tranqüilo, uma imagem que lhe trazia uma dúvida terrível, a impressão de estar virando viado.

Talvez não se transformando. Talvez apenas se descobrindo, se deparando com uma surpresa muito desagradável sobre si mesmo. Mas ainda assim, era uma idéia difícil de aceitar, pois, pondo de lado qualquer preconceito, ele não se lembrava de ter sentido nada parecido até aquele ponto de sua vida. É verdade que raramente prestava atenção a sentimentos e sensações, e que permitia que seus pensamentos afogassem tudo em falsa racionalidade, mas lhe parecia evidente que algo tão fundamental já devesse ter se manifestado de um modo mais contundente aos próprios olhos. Talvez este tipo de raciocínio apenas valesse para as pessoas normais. Talvez ele tivesse alguma deficiência emocional, algum desajuste sério que fazia com não pudesse ter a menor noção de quem ele realmente era e do que gostava na verdade.

Também, nunca haviam perguntado. Nem ele mesmo havia, pois estava sempre ocupado não perguntando nada sobre si ou sobre os outros.

O motivo de tanto desconcerto, contudo, não era um desejo homossexual manifesto. Olhava para a outra cama, via o amigo deitado, embora ele agora se sentisse muito desconfortável em chamá-lo de amigo, mais ainda de companheiro de quarto, e sentia afeição por ele, apenas isto. Afeição, como a que se sente por um irmão, ou então pelo pai. Não, não pelo pai. Mas era só isso, nada de viadagem. E repetiu isso a si mesmo várias vezes. Nada de viadagem. Mas ainda assim, as imagens do sonho estavam vivas e era um sonho muito gay com Matheus. Mal teria coragem para encará-lo dali em diante.

E procurou não fazer isto durante todo o sábado. Esforçou-se para evitar o amigo e, nisto, acabou se abstendo de todas as outras atividades que não fossem ficar sentado estudando. Deixou de tomar banho, deixou de comer, deixou de se alimentar. Conseguiu, entretanto estudar, num esforço enorme para destruir todo o mundo à sua volta pelo estreitamento, excepcionalmente maior, da própria percepção. Em se tratando de Jorge, aquilo era muito, era a última palavra em negação. Mal poderia ouvir o que se passava ao seu redor.

Parecia um monge sentado com as costas eretas por horas, repetindo em sua mente seus mantras científicos, os dogmas que ele tentava sacralizar na vã esperança de afastar as suspeitas que tinha sobre si mesmo. Que tarefa difícil. Pelo menos ele iria bem na prova.

Três horas após o pôr do sol, o telefone tocou, e tocou de um modo insistente, pois quem estava ligando não teve o bom senso de desistir de importunar Jorge, e os outros inúteis da pensão haviam saído para fazer algo heterossexual. Não teve jeito, ele teve que saltar de seu pequeno bote salva-vidas para encarar a própria fome e a sensação de que estava imundo. Ao atender o telefone, arrumou outra distração; a cobrança por parte da mãe, que insistia na causa perdida que era Jorge, seu maldito filho.

“Então você não vem mesmo hein Jorge? QUAL O PROBLEMA?”

E Jorge, como sempre sem entender, começou a se sentir péssimo, minúsculo, inferior, um fracasso, havia um peso sobre si que o impedia de falar. Sua atenção era constrangida pelo próprio corpo, a tensão na mandíbula, a dor da coluna, vergada sob a cabeça que pesava como chumbo, as costelas que se retraíam e os músculos que perdiam o tônus. Ele se sentiu a criatura mais patética do mundo, e esse foi o primeiro julgamento sério que fez acerca de si mesmo, ultrapassando todas as próprias expectativas, que eram bem pessimistas. Quem ele era? O que ele era? Pra que ele servia? Quem gostava dele? Pensou em perguntar à mãe, mas não o fez, pois nada disso, ele acreditava, seria levado a sério por ela, que tinha outras coisas com que se preocupar, como exercer a autoridade sobre ele, exigindo que viajasse até ela sob o pretexto de encontrar seu pai, aquele homem estúpido de quem ninguém, absolutamente ninguém gostava. Uma abominação, era isso que a coisa toda era. Talvez ele fosse mesmo alguém abominável, talvez devesse mostrar isso ao mundo, expor um pouco suas trevas. Talvez não.

“...”

“Você não vai vir, seu bosta?”

“...”

E desligou. Tirou do gancho, porque sabia que ela ligaria de volta e deu um soco na parede com a mais pura, vermelha e ardida raiva. Foi bom. Quando Matheus chegou, o nervosismo de Jorge dobrou, e ele não sabia o que fazer. Impossível esconder sua inquietação, ele geralmente fazia isto posando como taciturno, pois as pessoas sempre interpretavam aquilo errado, como se ele apenas fosse uma pessoa séria, pensativa, calma. Como estavam enganadas.

“Vai cara, agora vamos encher a cara.” Disse Matheus ao ver como o amigo estava nervoso. “Eu comprei cerveja, vinho, e tem um pouco de vodca também. Vamo lá que você tá precisando. Eu também tô, porque a vida tá foda. É ou não é?” e deu uma piscada malandra e amiga. Jorge estremeceu.

Matheus, o cara que até aquele dia mais tinha conquistado a confiança e a afeição de Jorge, foi apanhar as bebidas. No começo, a situação o havia deixado muito tenso, mas aos poucos foi relaxando. Talvez não fosse tão ruim assim. Quem o poderia recriminar?

O amigo voltou com um drinque já pronto para Jorge, ele era bom nessas coisas de álcool. Estava forte, era como se vapores fossem escapar de seus poros. Uma pontada quente, um impacto que zuniu e reverberou por sua cabeça e a sensação de alívio e relaxamento. Jorge deixou-se cair na cadeira...

Acordou na cama, domingo de manhã e ficou um tempo remoendo as coisas. Pouco tempo foi necessário para que ele pudesse constatar que sua madrugada havia sido extremamente gay e que seus sonhos haviam ficado mais obscenos e cheios de detalhes. Onde aquilo ia parar? Ficou mais confuso e nervoso, aquilo tudo era um pesadelo que substituía sua vida, que já não era nenhum sonho. Daquela vez, havia sonhado que Matheus efetivamente lhe comia a bunda! Essa não!

Ficou na cama olhando para o teto, a cabeça latejando, os olhos secos ardendo na implacável vigilância de absolutamente nada e os braços pesados na cama. Jorge era todo náusea e descontentamento. Depois de um tempo, resolveu olhar as horas, apenas para confirmar a suspeita de que era tarde. Tarde demais para voltar atrás? Essa resposta o relógio jamais poderia dar.

Mas ela viria, e muito mais cedo do que Jorge poderia ter cogitado. No final, a surpresa não foi capaz de pôr fim a sua desventura, mas ele não pôde deixar de se sentir aliviado pelo rumo que as coisas tomaram.

Ele nem ao menos precisou sair da cama para que sua vida se tornasse ainda mais surreal. Tudo que ele precisou fazer foi ficar deitado, tentando criar coragem para voltar a estudar, pois uma série de acontecimentos havia irrompido pela manhã de domingo e a bomba viria parar em suas mãos em poucos minutos.

Tudo começou com um barulho de fúria, de impaciência, de alguém que se aproximava para acertar as contas sobre algo que o estava irritando profundamente. Era o som da cólera, o som das situações em que as palavras se tornam coadjuvantes de gestos agressivos e possíveis pancadas. A porta da casa se abriu com violência e Jorge ouviu os passos que, cada vez mais altos, se endereçavam indubitavelmente à sua pessoa. A porta do quarto se abriu de modo igualmente brusco, num paralelismo que fascinou, num nível muito baixo e quase imperceptível, é verdade, a mente matemática de Jorge. Olhou para a figura indignada parada à porta e não a reconheceu. Era um homem, e não havia nada de particularmente estranho nele, tirando a raiva. Jorge notou que ele segurava um telefone celular cujo modelo parecia muito o de Matheus. Logo depois, constatou que era exatamente o aparelho do colega de quarto, ausente naquele momento.

O homem se aproximou pisando firme e Jorge fez um pequeno esforço com o pescoço para encará-lo direito. Levantou as sobrancelhas em sinal de indagação, tudo bem que várias pessoas moravam na pensão e que por isso havia sempre convidados estranhos circulando por ali, mas aquilo era estranho demais. E o que o homem poderia querer com ele?

Não demorou para descobrir. O cara olhou bem para seu rosto. Afastou rapidamente a cortina para observar com mais luminosidade, e sentenciou seguro:

“É, é você mesmo. É você que é o Jorge!”

“...”

“O quê, não adianta se fazer de besta! Eu já sei de tudo tá entendendo? Você acha que eu sou trouxa?”

“... hein?”

“Olha aqui, seu viado cínico!”

Dito isto, o impertinente e misterioso homem esticou o braço e manteve o celular a alguns centímetros dos olhos de Jorge. Uma foto estava sendo exibida no painel e Jorge estava lá. De bruços, e o pior, sendo enrabado. Presumivelmente, por Matheus, que quis registrar o momento. O rosto de Jorge, de lado apoiado no travesseiro, os olhos quase fechados. Quase. Bem, aquilo explicava a terrível dor que sentia no rabo.

Um choque destes é tão grande que é dificílimo de assimilar.

Como era gente boa o Matheus.

E o homem ia passando as fotos, uma mais ultrajante do que a outra. E já aos berros:

“Seu pervertido! Fique longe do Matheus, ele é meu!”

“...!!!!”

O conflito na cabeça de Jorge era inevitável, estava mais seguro de si agora que percebia que não era viado. Só que sua revolta crescia, pois havia sido extremamente sacaneado por quem sentia enorme consideração e ainda tinha que agüentar o ciúme daquela bicha louca. Ques filhas da puta esses dois, pensou Jorge, QUES FILHA DA PUTA!:

“SEU FILHA DA PUTA!” gritou Jorge, como se estivesse sendo parido naquele momento e recebesse um tapa muito forte na bunda. “SEU FILHA DA PUTA DO CARALHO! CALA ESSA BOCA, BICHA DE MERDA! EU NEM SABIA DESSA PUTARIA TODA!” E levantou-se com rispidez, com todos os músculos do corpo preparados para um massacre. “QUEM É VOCÊ, SEU MERDA?”

“Eu sou o Otávio, namorado do Matheus!”

“AH É MESMO? É MESMO? POIS ESSE F I L H O D E U M A P U T A DO SEU NAMORADO ME EMBEBEDOU, DEVE TER ME DROGADO TAMBÉM, PORQUE EU NEM SABIA! NEM VIADO EU SOU!”

Otávio ficou sem palavras. Não era para menos, ele que estava resoluto em surpreender acabou sendo surpreendido com uma pancadaria verbal, e pelos modos de Jorge, ela poderia se tornar real. Então a reversão da surpresa foi sucedida por um medo crescente e, como costuma acontecer nestas ocasiões, Otávio procurou se acalmar, em clara manifestação de instinto de sobrevivência:

“Me desculpe... eu, eu, não deveria ter entrado aqui desse jeito,eu”

A frase foi interrompida por um soco no estômago.

Jorge nunca havia tido destaque nenhum, sempre foi visto como um zero à esquerda, e nem ele próprio se importava com a idéia. Mas aquela manhã foi histórica. Otávio dobrou-se no chão e tentou puxar o ar de volta, mas não conseguiu, não poderia nem ao menos reclamar da dor. Jorge estava completamente furioso, caminhou por cima dele, pisando com mais força do que precisaria para se apoiar, pegou a carteira e saiu batendo a porta. Em frente à pensão, formando mais um obstáculo, a rodinha de violão, empenhando-se em dar nos nervos. Lá estava Paulinho Roberto:

“Eu prefiro SEEer...
Essa metamorfose ambulante!
Do que ter aquela velha opinião formada sobre TUUUUUDOAH
Do que ter aquela velha....
O QUÊ? NÃO!

BLÉIN! CRACK! TÓIN! PLEC!


Jorge teve que interromper a música para quebrar o violão, ou talvez ele tivesse arrebentado o violão para que fosse interrompida a canção, àquela altura ele já não tinha mais certeza.

E afirmou, categórica e colericamente:

“EU DETESTO ESSA MÚSICA, SEU MERDA!”

O murmurinho das meninas foi esse:

“Ai gente, credo, que horror, nossa... ai, ele é louco, vamos sair daqui gente, ai.”

E todas saíram na hora, menos a Marcinha, que ficou olhando Jorge, ali, a poucos metros dela, primitivo, bestial, de pijama e quase babando. Ela estava visivelmente excitada, mas logo foi acompanhar as colegas.

Jorge saiu correndo e tinha destino certo; a rodoviária. Ia pegar o ônibus para poder visitar o pai no hospital, e aproveitaria a oportunidade para mandar o velho tomar no cu e a mãe, pra puta que pariu.

E ele mandou, com certeza mandou.