Tuesday, August 28, 2007



KELLY



O corpo da moça violentada havia sido encontrado há dez dias, e Cabral estava pensativo na Polícia Civil, decidindo sobre o rumo das investigações.

A descoberta foi o resultado de uma ligação anônima feita ao disque-denúncia da Secretaria de Segurança Pública. A pessoa disse que havia uma movimentação suspeita em uma construção, próxima à casa dela. A denúncia foi posta a termo e enviada à Polícia Civil, tendo chegado às mãos do Delegado Florêncio Neves, que expediu a ordem de serviço aos investigadores.

A ordem foi recebida pela equipe do investigador Cabral, um homem que tinha força no caráter e no corpo. Não tinha nojo de nada, apenas o forte senso de dever e a tenacidade dos homens simples e seguros. Ele cumpria sua função com José Eduardo e Rogério, investigadores mais novos que o respeitavam suficientemente. Ao delegado davam sua obediência e ao Cabral, seu respeito, exceto pelo fato dele torcer para o Corinthians. As conversas sobre futebol sempre terminavam com Cabral sendo zoado por todos, por ser torcedor do timão. Eles diziam que aquilo não ficava bem para um policial.

Cabral argumentava que, ao prender, perguntava ao meliante qual era o time de seu coração. Afirmava, com fingida propriedade, que, estatisticamente, os principais times de São Paulo eram representados de modo equilibrado pela criminalidade. É claro que ele nunca perguntava, mas era bem capaz que alguém acreditasse nessa história, tamanho era o seu prestígio. Lembrava-se da brincadeira sempre que prendia alguém que estava com a camisa do Corinthians. E era freqüente, para seu pesar.

Então, numa manhã de segunda-feira, Cabral recebeu a denúncia que o levaria ao cadáver da moça. Toda a informação que tinha era o endereço e uma suposta movimentação suspeita no local. Como se tratava de uma construção, preferiu ir já de manhã para aproveitar a luz do Sol e para não se arrepender depois, pelo indevido desprezo de seu instinto, que naquela hora lhe indicava a necessidade de urgência. Era algo intangível, uma pista, um palpite escorado pela experiência, os alicerces do que logo seria um raciocínio lógico. Cabral aprendeu a confiar nestes fantasmas, pois quase sempre eles ganhavam a densidade da carne.

Arrumou suas coisas, ajeitou o revólver. Chamou seus colegas, mas apenas Rogério estava disponível. Os dois rumaram para a viatura descaracterizada, uma Ipanema preta, e seguiram para o local.

“Cabral, eu estou de saco cheio do Gérson, cara.”

“O Gérson é um pau-no-cu mesmo.”

“Eu sei, mas é que ele tá passando dos limites, Cabral. O cara é muito folgado, meu! Só fica coçando o dia inteiro e nunca tá perto quando precisa. O celular dele tá sempre fora de área. E ontem eu ouvi uns boatos...”

“Boatos?”

“É cara. Boatos. Parece que ele fica atormentando magnata, meu. E a pedido de outro magnata ainda. E ganha uma grana violenta nesse negócio aí.”

“Olha, eu não sei não, Rogério. O Gérson é muito, mas muito chato mesmo, e por isso eu nem fico surpreso de ouvir essas coisas. Intriga na polícia é uma merda. Cansei de ver uma porrada de marmanjo se comportando feito bichona, porque não ia com a cara do outro. Agora, o Gérson é um cuzão. Fato. Mas acho que o pessoal tá inventando.”

“É, pode ser.”

“Fique de olhos abertos, de todo modo.”

“Acho que é aqui.”

A construção de uma casa. A visão triste e comum de uma obra paralisada. Uma vizinhança pobre, uma criança perseguindo bandidos imaginários com o triciclo na calçada, uma arma de plástico em sua mão e sons imitados por sua boca, que soavam mais como bombas que como tiros. Ao fundo, o barulho de uma panela de pressão.

Cabral e Rogério se aproximaram. Qualquer um poderia entrar lá, a qualquer hora. Seja lá o que houvesse de suspeito por ali, já havia desaparecido, ou se escondido nos projetos de corredores da casa. Cabral pediu que Rogério sacasse a arma e ficasse de prontidão. Então, fez bastante barulho, jogou pedras e telhas que estavam no chão. Era mais fácil colocar fogo no mato do que se embrenhar nele para pegar o rato. Ninguém se apavorou pela algazarra. Ninguém saiu correndo, ninguém apareceu para atirar. Poderia não haver nada lá dentro.

Mas havia.

Entraram, por lados diferentes, adotando uma aproximação mais silenciosa. Foi Rogério que encontrou a moça. Chamou Cabral, que logo apareceu e constatou os sinais de violência sexual no corpo seminu.

Então, dez dias depois, Cabral estava pensativo, sentado na sala dos investigadores. Já havia tomado várias providências, conseguiu a assinatura do delegado para várias ordens de serviço. Mandou interrogar os parentes, os amigos da vítima e pessoas da vizinhança, identificou o dono do terreno, o engenheiro responsável pela obra e quis saber sobre cada um dos homens que havia trabalhado lá. Isto seria difícil. Provavelmente, não saberia sobre todos, talvez algo sobre os últimos. Conferia agora os relatórios em que estavam registradas as diligências, e era uma baita papelada.

O caso havia causado comoção geral. Por várias vezes, a população saiu às ruas, vestindo camisetas com a foto da menina e protestando. O nome dela era Kelly, tinha 18 anos, gostava de sair com as amigas, de cantar no chuveiro e odiava falsidade, inveja e pessoas que se achavam melhores que as outras. Violência urbana era muito comum, mas aquilo, como sempre, parecia ter sido a gota d’água. Cabral já estava estranhando a persistência do sentimento e a força que aquilo ganhava a cada dia. É claro que a imprensa fazia seu papel, repisando e repisando a ocorrência, mostrando fotos da menina direto, e cobrando as autoridades por meio de âncoras indignados. Na véspera, várias pessoas passaram reclamando, muito contrariadas, em frente ao próprio prédio da Polícia, ostentando faixas e cartazes, e alguns usando aquele nariz de palhaço.

Em meio à multidão, várias frases podiam ser ouvidas:

“OS MARGINAIS ESTÃO RINDO DA LEI!”

“ATÉ QUANDO ESSA IMPUNIDADE?”

“É REVOLTANTE! O BRASIL ESTÁ DE LUTO!”

“O BANDIDO RESPEITOU O DIREITO DELA?”

Cabral também estava muito perturbado por tudo que tinha ocorrido, afinal, ele também tinha filhos. Mas olhava para a situação de um modo menos passional. Pela sua concepção, um grande dano havia sido causado, algo que nunca seria reparado. Mas dali em diante, seria impossível fazer Justiça. O máximo que se poderia obter era a medida preventiva, encontrar o responsável para que, se mais crimes ocorressem, que ao menos fossem pelas mãos de outro homem.

Cabral olhou a relação de alguns homens que estavam entre os últimos a trabalharem nas obras. Passou os olhos pelos nomes e começou a checar as fichas em anexo. Uma delas chamou a atenção: internações na FEBEM por furto qualificado, roubo a mão armada e lesão corporal dolosa. O único com antecedentes, o único que já havia despejado violência criminosa sobre o mundo e conhecido a face mais sincera do Estado. Josimar Aparecido dos Santos, 24 anos, residência fixa, pedreiro, casado e com três filhos. Mora no mesmo bairro que a menina, não muito longe da construção. Seria este o homem?

O inquérito policial já havia sido instaurado e tramitava sob os cuidados do escrivão Edson. Cabral entregou o material novo ao escrivão, que o juntou aos autos e os enviou ao Delegado Neves.

O expediente terminou e Cabral voltou para casa, tentando não ser policial perto da família.

No dia seguinte, o Delegado examinou os autos, a ficha de Josimar lhe chamou a atenção. Aquilo era, sem sombra de dúvida, um grande progresso nas investigações. Da próxima vez que os repórteres viessem perguntar, ele poderia dizer que já não estavam mais de mãos vazias. Ali estava um possível suspeito, alguém que muito em breve poderia pôr um ponto final na história toda. Fora este homem, nada de relevante havia sido descoberto, nenhuma testemunha, nenhum inimigo, nenhuma ameaça, nenhum ex-namorado furioso. Não haveria nada se não fosse por Josimar, o pedreiro delinqüente, desgraçado, ordinário, sem-vergonha, estuprador e filho da puta. Mais uma ordem de serviço expedida, dessa vez para que o pedreiro fosse ouvido na Delegacia.

Era cedo e Cabral ainda não havia chegado. Os outros colegas de equipe estavam ocupados, averiguando outras denúncias anônimas. A ordem de serviço chegou à sala dos investigadores e encontrou as mãos de Gérson, o cara de que ninguém gostava. Ele pegou o papel e pôs-se a ler. Em poucas linhas já percebeu que era relacionado ao caso da Kelly, o mesmo caso que o BONZÃO do Cabral estava supervisionando. Bem, havia um carimbo de urgente na folha, portanto, Cabral não poderia reclamar depois por Gérson ter cumprido uma diligência tão importante, que não poderia esperar.

Gérson não hesitou, fez com que a pança apontasse porta afora e foi pegar o malandrão. Entrou uma viatura preta, vermelha e branca que espalhava orgulhosa para todos que era da Polícia Civil. Saiu cantando pneu, rumo à casa de Josimar.

No caminho ligou o rádio. Não o da Polícia, o FM:

“You better run, you better do what you can! Don't wanna see no blood, don't be a macho man! You wanna be tough, better do what you can, so beat it, but you wanna be bad!”


Curtiu o som e aumentou o volume:

“Just beat it, beat it, beat it, beat it! No one wants to be defeated! Showin' how funky and strong is your fight! It doesn't matter who's wrong or right! Just beat it, beat it Just beat it, beat it”

Perto do local, o capeta fez uma visita a Gérson e pôs-lhe um sorriso maléfico no rosto. Ele resolveu ligar a sirene e chegar a toda velocidade, fazendo o maior escarcéu.

As pessoas ficaram assustadas e começaram a espiar pelas janelas. Tudo aquilo tinha que ter alguma coisa a ver com o caso Kelly.

Gérson parou e saiu da viatura com a arma empunhada: “AQUI É A POLÍCIA PORRA!”

Cabral apenas conseguiu chegar no prédio da polícia no final da tarde. Havia recebido uma ligação de seu colega José Eduardo pedindo ajuda para cumprir uma ordem. Ele tinha que ouvir várias pessoas de uma empresa acerca de uma denúncia de estelionato e precisava da experiência de Cabral. A tarefa foi demorada e acabou se apurando que não havia crime ali.

Assim que chegou, Cabral foi falar com o escrivão Edson sobre o caso Kelly. Edson contou:

“Ah sim, Cabral, hoje o Dr. Neves ouviu aquele pedreiro, o Josimar.”

“Tão rápido assim?” A voz de Cabral escondia muito mal sua instantânea apreensão.

“Ah é, quem trouxe o camarada aqui foi o Gérson.”

“O Gérson? Posso ver o termo do depoimento?”

“Claro.”

Edson entregou a folha com o depoimento de Josimar e lá estavam, nome completo, filiação, data de nascimento, número do documento, estado civil, ocupação e as declarações. Cabral leu. Josimar só falava em Jesus. Disse que era evangélico há dois anos, que havia se arrependido do que tinha feito na juventude, e que a FEBEM era horrível. Até começava a ser pastor. Disse que conhecia Kelly da vizinhança e que aquela era uma menina abençoada, todo mundo gostava dela. Afirmou que tem orado por ela todos os dias e que estava muito triste pelo que havia acontecido. Foi pedreiro, e o trabalho naquela construção havia sido o último. Todos foram dispensados antes do término da obra, ele ficou desempregado, mas logo Deus operou um milagre em sua vida e permitiu que vivesse com a ajuda da igreja. Nunca havia conversado com Kelly, a conhecia apenas de vista. Disse que tinha três filhos, e que a mulher estava grávida do quarto. Não havia visto nada de suspeito nas imediações da construção nas últimas semanas e, desde que começou na igreja, tem passado a maior parte do tempo lá, auxiliando na parte administrativa e participando dos cultos. Nada mais disse e nem lhe foi perguntado.

Cabral devolveu o papel a Edson e este comentou: “Não teve indiciamento e nem nada, não temos nada contra esse cara. Pedimos para ele ceder material, para que o Instituto de Criminalística compare com o esperma encontrado na vítima, e ele fez isso sem problema, foi muito solícito. Inclusive, ele nasceu na mesma cidade que o Dr. Neves, então os dois passaram um tempo falando sobre isso, sobre como o interior está diferente, essas coisas. É Cabral, isso só quer dizer que vai ter mais trabalho ainda para você”.

Cabral não quis alimentar a conversa, sua perturbação crescia, pois sabia que aquilo tudo era muito ruim. Estava convicto de que precisava agir rápido. Saiu da sala dos escrivães e atravessou o corredor, até passar pela sala dos investigadores. O plano inicial era seguir em frente, mas quando viu Gérson lá dentro teve que parar. Não chegou a entrar, apenas inclinou a cabeça porta adentro e vociferou exasperado:

“GÉRSON! VOCÊ É UM FILHO DA PUTA MESMO, HEIN?”

Todos na sala ficaram estáticos. Gérson não se atreveu a responder, pois havia ficado claro para todos que aquela era uma pergunta retórica. A única resposta veio da janela, que tremeu de modo imperceptível diante da voz de trovão.

Cabral seguiu pelo corredor, vermelho. Rogério, seu colega de equipe, conseguiu sair do pequeno choque que envolvia todos na sala e o seguiu até a Ipanema.

O Sol estava terminando de se retirar e Josimar estava no chão debaixo de uma pancadaria que poderia ser comparada ao martírio de Cristo. Assim que deu as caras no bairro, a notícia se espalhou, e a população revoltada se aglomerou para recebê-lo. Estava a um quarteirão de sua casa quando foi atropelado pela manada e cada um dos populares queria fazê-lo pagar pela morte de Kelly. O linchamento de Josimar não foi planejado, foi espontâneo, veio do calor do momento.

“COMO VOCÊ TEVE CORAGEM DE FAZER AQUILO COM A MENINA SEU MONSTRO?” e bateram-lhe com um martelo que o atingiu no cotovelo com toda a força quando tentou se proteger. O choque impediu que continuasse se defendendo e logo ele não conseguiu mais correr.

“NÃO TEM LEI NESSE PAÍS! DEIXARAM O ASSASSINO SOLTO!” e tome paulada na cabeça, chute na barriga, pedrada na nuca, soco no peito e arranhão no pescoço. “CHEGA DE IMPUNIDADE!” e tome pisão por tudo quanto era parte do corpo de Josimar. Sentiu muita dor, seu coração disparou, toda a adrenalina veio lhe aumentar o desespero e apenas pôde implorar:

“PAREM! PELO AMOR DE DEUS PAREM!”

“VOCÊ PAROU QUANDO ELA PEDIU? VOCÊ PAROU QUANDO ELA CHOROU? MONSTRO!”

A única coisa que podia fazer era gritar de dor e chorar. A únicas palavras que saíam eram pedidos de clemência. Eram fracos “nãos” que saíam de seu coração pisoteado, mas ninguém se comoveu. Ninguém parecia ver a trágica expressão de agonia em seu rosto, pois o sangue a cobria. Estava ficando deformado e o corpo todo anestesiado, apenas sentia seus membros sendo repuxados e o seu corpo balançando na física das pancadas. O mundo foi sumindo e o pouco de consciência que sobrou foi canalizada para a oração:

“Deus todo poderoso, me ajude, me dê paz, faz meu sofrimento parar... Deus misericordioso, me socorra em sua glória...”

Dois estrondos interromperam tudo que acontecia ali. Era Cabral que corria em direção ao massacre dando tiros para cima a fim de espantar a multidão. Rogério o acompanhava.

“Rogério, rápido, tem um batalhão da PM que não é longe! CHAMA OS CARAS!”

Rogério obedeceu e foi até à viatura. Cabral continuou, teve que disparar mais um tiro para o alto. “AQUI É A POLÍCIA! PODEM PARAR COM ESSA MERDA!”

As pessoas pararam de dilapidar o corpo de Josimar e olharam para a arma de Cabral intimidadas. Era como se um predador maior e mais perigoso houvesse se aproximado. O investigador olhou para Josimar e notou que ele ainda se mexia, ainda respirava, mas estava num estado deplorável. Vomitava sangue.

Josimar virou a cabeça, abriu os olhos na direção de Cabral com a arma empunhada. Não entendeu nada, pois tudo que se lhe apresentava era um vulto.

A situação ficou assim por alguns minutos. Cabral formou um círculo de proteção em torno de Josimar à distância, apontando a arma para todo aquele que tentasse chegar perto. Às vezes dava advertências em alto e bom som para que ninguém se movesse.

A Polícia Militar começou a chegar e foi seguida por uma ambulância. Os PMs controlaram a multidão e os para médicos seguiram com Josimar para o hospital. Cabral e Rogério entraram na viatura e seguiram a ambulância.

Rogério reclamou no caminho: “Que merda isso vai dar, cara”.

Cabral comentou, tenso: “Puta que pariu, é muito difícil que tenha sido ele. Não tinha nenhum crime sexual ou homicídio na ficha dele.”

Josimar morreu a caminho do hospital.

Três meses depois, Cabral lutava para continuar com as investigações, mas ninguém queria mexer na caixa de marimbondos. Foi quando chegou o laudo pericial do Instituto de Criminalística, atestando que o esperma encontrado na vítima não era de Josimar. Ele era mesmo inocente. Àquela altura, não se falava mais tanto do caso Kelly na televisão, nem nos jornais. A inocência de Josimar foi noticiada de maneira tímida, rápida, e o apresentador do telejornal logo passou para o assunto seguinte, sem fazer qualquer comentário de indignação, sem cobrar as autoridades.

Ninguém fez passeata com cartazes e a foto de Josimar estampada na camiseta. Ninguém saiu às ruas para mostrar seu repúdio à impunidade presente no país e para clamar por Justiça.

E no bairro de Kelly e Josimar, as pessoas espiavam o mundo encolhidas atrás das janelas. Todas amarelas e acuadas, prontas para darem o bote.