Wednesday, August 22, 2007



SEM FUTURO.




Jefferson era um garoto de oito anos que não chamava a atenção de ninguém. Alguns, nas raras ocasiões em que pousavam os olhos sobre ele, o achavam parecido com um rato. Outros achavam que ele não se parecia com nada.

Jefferson acordou bem disposto naquela manhã de sábado, embora estivesse sendo esmagado pelo peso de adversidades que ele nem imaginava que pudessem existir, como os problemas sociais que limitavam sua vida e a massacrante deficiência da estrutura emocional de sua família. Era um convívio cujas lições o menino já começava a assimilar sob a forma de taquicardias, choros freqüentes, febre e uma crescente agressividade. Era surpreendente que ainda conseguisse ter noites de sono tão boas como aquela.

Os outros irmãos, cinco meninos e três meninas ainda dormiam empilhados no mesmo quarto, serenos, aproveitando a presença de um teto sobre suas cabeças como se fossem reis. Os pais também estavam ali no meio e roncavam, encobrindo as crianças com uma respiração mais pesada, problemática, adulta.

Jefferson vestiu sua camiseta mais nova, dentre as duas que podia escolher. Era branca, já encardida, com umas coisas escritas, uns desenhos e um número. Ele não sabia que aquilo tinha que significar alguma coisa, e se algo deste tipo lhe fosse sugerido, acharia muito estranho que sua camiseta tivesse algo a dizer. Apanhou sua caixa de engraxate e alguns trocados que estavam sendo escondidos para o sábado, e pôs-se a caminhar com altivez, o que era um excesso para um garoto de oito anos analfabeto. Na saída, encontrou Rambo, um cachorro vira-latas tratado pela mãe, que saudou o menino como seu mestre, sem barulheira e com muita dignidade.

O garoto abandonou o casebre, escoltado por Rambo.

O ar estava um pouco turvo por causa da terra que subia. Jefferson já estava familiarizado com a visão, pois era sempre o rastro deixado pelo Fiat 147 do vizinho Jorge. Ele deveria ter saído há pouco tempo. Uma pena, pensou o menino, pois podia ter conseguido uma carona para a cidade e, bem mais rápido do que esperava, estaria no centro destruindo a vida de alguém no fliperama.

O jeito era caminhar até o ponto de ônibus. O trajeto não era tão ruim assim, embora Jefferson nem pensasse sobre ele para cogitar reclamações. A travessia era sempre marcada por mulheres que penduravam roupas e conversavam, homens fumando cigarros e falando de futebol, além de algumas poucas crianças correndo, rindo e brincando. O tipo de imagem que persiste na memória, e que logo ganha aquele colorido todo especial da nostalgia. Jefferson não sabia, mas qualquer porcaria que acontecesse em sua vida naqueles dias seria lembrada com carinho em seu futuro.

A figura do engraxate perambulando pelo bairro era algo com o que todos ali estavam acostumados. Era muito diferente do que acontecia no centro, em que as famílias boas passeavam e fingiam que não o viam. Será que alguém pensa sobre o que está passando pela cabeça de um engraxate quando cruza com ele pela rua? Na verdade é o mesmo que acomete toda criança; sonho, fantasia, vontade de vencer e passar por cima de tudo. Vontade de dominar o mundo.

Jefferson havia escolhido começar pelos fliperamas da cidade.

Depois de uma caminhada de dez minutos, ele chegou ao ponto. Rambo, sentado ao seu lado, já condicionado pela repetição, esperava que o ônibus chegasse para entregar seu amo à proteção do vagão de lata. Rambo nunca poderia ter noção do que era a circular, mas já havia aprendido que o menino não precisava mais dele quando lá subia. Então ele passeava um pouco e fazia um social com seus colegas da vizinhança, à moda dos cães. Às vezes ele tinha sorte e topava com uma cadela no cio, e tudo funcionava mecanicamente, como ocorre com alguns homens. E como alguns homens, ele não poderia ter a menor medida de quantos filhos tinha espalhado por aí. E como alguns homens, raríssimos é verdade, ele um dia havia encontrado uma cadelinha que era sua filha e foi pai dos próprios netos. Rambo era um cão velho e presepeiro.

O ônibus chegou e parou para as pessoas que acompanhavam Jefferson e Rambo. Eram pessoas que pareciam boas, mulheres na maior parte, com sacolas de feira e a idade oscilando entre média e avançada. Todas exalavam o conforto das mães, avós e tias, mulheres que falam bastante e que pegam crianças no colo. Mulheres que compartilham entre si amarguras em segredo, mas que sorriem para o mundo.

O ônibus era de um amarelo velho e tinha algumas linhas nas laterais que variavam entre o marrom e o vinho. Em cima delas, em marrom, estava escrito circullaire, pois apenas circular seria muito sem graça. O menino subiu e passou por baixo da catraca. Logo que encontrou uma cadeira de plástico vazia, sentou-se. Estava ansioso, sua felicidade de criança transbordava. Olhou pela janela e viu o ponto se afastando cada vez mais rápido. Notou que Rambo, sentado com a língua de fora, ainda olhava para ele.

A viagem não demorou mais que quinze minutos. Era cedo, não havia trânsito. E era sábado. Como sempre, o menino prestou atenção ao percurso, ao modo como o ônibus descia os morros da vizinhança em direção ao centro. Passou pelo comércio de bairro, e olhou para aquelas lojinhas cheio de esperança. Ele sempre poderia guardar uns trocados para comprar aquelas balas que ficavam nos potes de vidro no balcão. Os brinquedinhos de plástico como carrinhos, aviões e soldados o fascinavam. Era tudo muito legal, e ele ainda não havia se ressentido por não poder tê-los. Numa descida, viu uma enorme escadaria de cimento na encosta, cercada por um verde que brilhava bonito ao Sol. Lembrou-se de quando sua avó o havia levado para passear por ali e lhe dera um sapo de borracha de presente. Era marrom, tinha os olhos vidrados e ficava com a boca sempre aberta. O pai havia jogado fora para ensinar alguma lição maluca.

O ônibus parou no terminal próximo à praça da cidade, região em que havia lojas turísticas, hotéis, bancas de jornais e o bar. Aqui os jovens se encharcavam de cerveja. Jefferson, de certo modo, sentia que o destino natural de todo homem era embebedar-se, mas achava que sua vez ainda não havia chegado.

Encostado na praça havia um hotel grande e tradicional, que encantava os turistas. No térreo havia uma galeria em que estava o melhor dos quatro fliperamas principais da cidade, e ela ficava aberta para todos. Na verdade, era difícil ver um hóspede jogando por lá. O lugar era dominado pela molecada, dos trombadinhas aos ricos e de crianças a adolescentes. Alguns adultos jogavam também, mas costumavam ser despachados sem piedade pelos meninos, que eram verdadeiros gladiadores nas máquinas.

Jefferson, aos oito anos de idade, era um prodígio. Jogava melhor do que engraxava sapatos e isto significava muito, pois era muito hábil em seu ofício. Posicionava o pé do cliente e ficava com a cabeça baixa, totalmente imerso. Não falava. Terminava o serviço mais rápido do que o normal, o que sempre causava espanto e desconfiança. Os homens o olhavam de lado, mas antes de lhe chamarem a atenção, davam uma conferida nos pés. Invariavelmente faziam uma cara que somava a surpresa à aprovação e pagavam com gorjeta. Jefferson gostava de ter este reconhecimento de um adulto. Não sabia que gostava, mas gostava de tudo, dos elogios abertos e dos silenciosos, do cheiro de couro, de graxa, de jornal e de cigarro. Sentia-se muito bem.

Entrou na galeria a passos rápidos. Que lugar lindo era aquele, piso de madeira, paredes bem pintadas e conservadas e, em um dos lados, as paredes eram vidraças por onde a luz do dia poderia entrar e dar o brilho do ouro aos vencedores.

Logo de manhã o fliperama estava movimentado. Outros engraxates já tinham chegado na frente dele e estavam jogando alucinados. A febre eram os jogos de luta, tanto os que em se poderia sair nas ruas batendo em pessoas vestidas como bandidos e punks, como aqueles de duelo. O grande termômetro dos fliperamas do mundo todo, o mais importante definidor de status entre os jogadores era o Street Fighter 2. Ou, como os garotos diziam, o estrite. Não sabiam o que o nome queria dizer, mas estrite era estrite, jogo de pancadaria, cheio de magias e poderes e lutadores do mundo todo. E aqueles botões? Eram seis botões que tinham de ser dominados, fora os truques com a alavanca para dar os golpes. O cara tinha que ser bom.

Jefferson foi até o caixa e comprou tudo que deu: cinco fichas. Segurou-as com força de ansiedade. Não podia perder, para ele era tudo sempre muito difícil, o desafio começava muito antes dele inserir a ficha na máquina e ouvir o som da ficha caindo para liberar o controle para ele. Na verdade, ele nem conseguia se lembrar de quando o desafio havia começado.

O menino teve que esperar na fila. Foi-se o tempo em que se poderia procurar outro jogo. O Street Fighter tinha sucateado o resto, não valeria a pena desperdiçar fichas com os demais, não se o que se queria era fazer um duelo de verdade. Havia jogos muito legais como Final Fight, Vendetta e Tartarugas Ninjas, é verdade, mas Jefferson queria ser o rei, e não dava para ser rei disputando por ninharias. Apenas o Street Fighter poderia coroá-lo.

Então ele esperou. Só havia uma máquina de Street Fighter 2 ligada naquela manhã e a garotada estava caindo em cima, do mesmo modo que fariam com as meninas, após entrarem na puberdade. Havia um moleque que estava detonando os adversários, comendo as fichas de todo mundo. Ele parecia ter uns onze anos e jogava com um sorriso malvado e metido. Jefferson já o detestou de cara e decidiu mostrar quem dava as cartas por ali.

Quando chegou a sua vez, o engraxate bateu na máquina cheio de moral e fez a ficha cair ruidosamente. Nem olhou para a cara do adversário. Escolheu logo o Ryu, pois estava a fim de apelar e sabia que não poderia facilitar contra o Guile de seu inimigo. A tela mostrou um avião voando até os Estados Unidos e, com um avião caça no fundo e alguns americanos de uniforme torcendo, a luta começou. A música era muito emocionante.

A cada segundo que passava, Jefferson ia ficando mais furioso. O oponente não lhe dava chances, pois era muito rápido para soltar sonic boom, também conhecido como “alec-fu”. Era um poder que todos faziam devagar, pois era necessário segurar a alavanca para trás por um tempo para carregar o golpe. Mas este menino era fera, segurava no tempo preciso, não deixava nenhum instante sobrar. O mesmo acontecia quando aplicava o anti-aéreo do Guile, que chamavam de facão. Ele o usava toda vez em que Jefferson tentava saltar sobre os sonic booms. O engraxate foi encurralado e perdeu o round, tendo sido arremessado contra um caixote que estava no canto do cenário.

Mas é claro que isto não poderia ficar assim, Ryu ainda era mais forte e mais rápido que Guile. Seus golpes saíam com mais facilidade, todos sabiam disso! E Jefferson era bom, já havia desbancado vários Guiles em sua vida. Quando no começo do segundo round, o oponente lhe acertou um soco na boca, sua frustração cresceu e a raiva tomou conta. Deu mais firmeza às mãos e ficou mais concentrado. Com ódio no olhar, Jefferson começou a encaixar os “Radúguets” e “Roriúquens” de Ryu. Berrou:

“CHUPA, FILHO DA PUTA!”








Isto esquentou a luta. A mesa virou de um modo que surpreendeu a pequena platéia da manhã de sábado. Jefferson estava dando um cacete no menino, cujo descontentamento crescia e atrapalhava cada vez mais. Perdeu o segundo e já estava levando uma surra no terceiro round.

“SHHHLLLLUUUUURRRRP! CHUPA! QUE DELÍCIA!” A tela ficou cheia de pontos coloridos de cuspe.

Essas provocações de Jefferson deixaram o outro menino muito nervoso. É claro que ele perdeu e foi embora. Quando ele saiu, Jefferson ainda esticou o pescoço e gritou:

“DESCULPA AÍ VIU!”

A história se repetiu nas lutas seguintes, o jogador era substituído apenas de um lado da máquina. Deveria ter vencido umas oito lutas na seqüência. Depois disto, o movimento diminuiu um pouco, e Jefferson foi obrigado a disputar apenas com a máquina. Era chato, ninguém parava para assistir, ninguém fazia um comentário do tipo: “NÓ! HUMILHOU! HUMILHOU!” ou então um: “NÓÓÓ! VAI DEIXAR BARATO?”. Isto fazia muita falta para o menino. É claro que um ou outro escorregão na luta o faziam protestar, e os palavrões proferidos eram surpreendentes na voz raivosa do garoto de oito anos.

Estava ficando um saco. Já estava prestes a matar de pancada o Bison, chefe final, pela décima quinta vez na vida, quando sua salvação entrou na galeria. Era um rapaz gordo, com uns dezesseis anos de idade, cujos maiores prazeres eram o jogo e a comida. Tinha tudo para ser um grande fã, disposto a levar a experiência do Street Fighter para além da simples proposta do leve entretenimento. Mas, seria ele bom o bastante para vencer um engraxate com a metade de sua idade?

O jovem se aproximou e cumprimentou Jefferson. Não o conhecia, mas assim mesmo o fez porque além de gordo era um menino educado, que não merecia de modo algum as troças de que sempre era alvo. Jefferson olhou de volta muito sem graça, sem saber o que dizer. Não disse nada e voltou sua atenção ao jogo. O rapaz deixou algumas coisas perto do cinzeiro, colocou a ficha, deu o start e fez aparecer na tela a frase: “Here comes a new challenger!”

Jefferson tentou se recompor, pois a coisa toda havia ficado séria uma vez mais. Os outros meninos já se aproximavam curiosos e se perguntando se finalmente havia chegado a hora de quebrar o domínio do pobre diabo. Mas, por mais que tentasse, Jefferson estava tendo problemas para se concentrar. Seus olhos não conseguiam focalizar bem o que acontecia no jogo e a resposta dos músculos das mãos aos estímulos visuais da tela estava ficando lenta. Estava muito cansado.

A luta começou sem que ele estivesse preparado. Desde logo apanhou do Ken escolhido pelo inimigo. Era a mesma coisa que o Ryu, por isso, o talento do jogador é que ditaria o rumo das coisas por ali. Só que Jefferson estava tendo sua habilidade sufocada por uma fraqueza crescente, um mal estar terrível. A barriga doía e era de fome, dessa vez era de fome.

Ele não era nem a sombra do que fora há meia hora. Lento, amador, distraído, estava perdendo a ficha, podia sentir várias engraxadas de sapato se perdendo, e seus esforços se tornando inúteis. Já não tinha mais força para gritar ou provocar, nem para humilhar. Não havia o que comemorar. Ryu tombou dramaticamente, com um gemido de cortar o coração e, quase que se poderia ver uma lágrima nos sprites dos olhos do lutador. E se ergueu para continuar sendo espancado e o pior de tudo, por seu grande rival, o Ken. Os meninos costumavam comentar que Ryu e Ken quase sempre se destruíam na porrada, mas, no fundo, eram grandes amigos. Só que nada daquilo importava naquela hora.

Metade do segundo round, Jefferson estava perdendo. Foi quando tirou os olhos da tela e viu que, próximo ao cinzeiro, havia uma barra de chocolate. A embalagem era vermelha e branca, o que mais poderia ser se não chocolate? Voltou a olhar para a tela logo. Deu um pulo que não tinha nada a ver e pagou por isto, foi ao chão mais uma vez. Ergueu-se, sem muita perspectiva. Olhou de novo para o chocolate e depois para a tela. Nada estava acontecendo. Chocolate, jogo, chocolate, jogo. Estendeu o braço num soco veloz, apanhou o chocolate e saiu correndo puxando a caixa de engraxate. Ryu ficou lá parado, apenas balançando em sua pose de luta normal, enquanto o menino corria sem olhar para trás e segurava o chocolate junto ao peito.

Jefferson saiu da galeria disparado, virou à direita, atravessou a rua, passou pela ponte que encobria o córrego, contornou o prédio das Thermas e foi parar na praça que tinha a fonte do leãozinho. Sentou-se num canto muito escondido, rasgou a embalagem e comeu o chocolate. Era maravilhoso, teve que se controlar para poder aproveitar. Teve a disciplina de um verdadeiro campeão, deu mordidas pequenas para render e sentir a doçura que poucas vezes podia provar. Ainda assim, tudo acabou rápido e o menino ficou lá parado olhando a embalagem rasgada. Passava os dedos por ela, sentia a textura e a fonte do leãozinho derramava água. Deixou o plástico de lado e foi lavar o rosto. Os dedos esfregavam a pele da cara e escorregavam em meio ao óleo, sujeira e suor. Era refrescante, lavou as mãos e bebeu um tanto bom.

Não demorou para perceber que continuava com fome. Então viu que perto dali estavam outros dois meninos, um da idade dele e o outro de apenas seis anos. O mais velho carregava uma caixa de engraxate também. Jefferson decidiu se aproximar, pois já conhecia os dois. Chegou e ficou olhando para eles. O mais velho, Patrick, olhou de volta invocado e falou:

“Que que foi?”

“Nada”. E Jefferson olhou para baixo.

“Que que tá quereno?”

Jefferson não disse nada. Voltou a olhar para os dois. Então perguntou: “Cadê os outro?”

“Ué, tão lá na praça perto da avenida” respondeu Rogério, o de seis anos.

Um pouco mais de tempo passou sem que acontecesse nada.

“Vamo lá”, convidou Patrick. E foram.

O lugar era próximo, além de muito agradável para as crianças. Muitas árvores, algumas tão velhas e com galhos tão podres que faziam os velhos reclamarem da prefeitura. Chegaram a um lugar bem difícil de ser visto de longe, cercado por árvores e moitas. Encontraram um grupo de cinco meninos, sentados, que conversavam e faziam brincadeiras de mão. Eles estavam cheirando uma cola miserável.

Não demorou para que tratassem Jefferson como um igual. Passaram-lhe um saco com a cola amarelada, de uso comunitário. Aquela cola que servia para colar os mesmos sapatos que ele engraxava. Parecia que ele estava destinado a se associar sempre às coisas mais rasteiras, como sapatos, cola, graxa e meninos de rua. Em sua cabeça infantil, era só o fliperama que salvava sua dignidade. No entanto, ele teve que abandonar o posto por causa da maldita fome. Mas a cola haveria de matá-la, além de permitir que ele fosse alguém diferente por alguns momentos. A cola fazia com que perdesse a noção de si mesmo, do próprio corpo e nada, nenhum dos problemas se fazia notar. Tudo que se sentia era o mundo girando lentamente.

O saco de cola inflava e murchava na boca de Jefferson, sendo o reverso do que acontecia em seus pulmões. Depois de pouco tempo ele já estava muito louco. Não era bom, mas assim a fome desapareceu.

Ficou lá sentado até que foi forçado a sair correndo por causa de um policial que se aproximava. Na verdade, ele não correu, não deu. Tudo que conseguiu fazer foi cambalear. No entanto, o oficial resolveu não perder o seu tempo perseguindo a ralé da cidade. Jefferson estava sozinho de novo, e o efeito da cola diminuía aos poucos. Pensou em voltar ao fliperama, pois ainda tinha quatro fichas. Por outro lado, poderia guardar as fichas para o domingo. Domingo era um dia bom, o centro ficava cheio de manhã por causa da ferinha e alguns homens sempre queriam ter os sapatos engraxados. Havia uma barraca em que ele poderia comprar churros, de doce de leite e de chocolate. Era uma das coisas de que mais gostava, além de pipoca. Havia vendedores bondosos que vendiam para ele mais barato, quando o dinheiro não dava. Alguns davam de graça, de pena. Não dar nada para bêbado era fácil, bastava chamá-lo de vagabundo e expulsá-lo que ele mesmo concordaria e iria embora. Mas com um menino cheio de fome seria sacanagem.

Jefferson gastou o tempo dando voltas pelo centro. A cola já tinha passado e a fome estava voltando. Decidiu voltar para casa, na esperança de que o alimentassem. Caminhou até o ponto de ônibus e encontrou mais gente que queria voltar para casa. Esperou.

O ônibus chegou e ele subiu, rastejou por baixo da catraca e ficou de pé vendo as pessoas andando na rua e os carros das famílias que saíam para jantar ou visitar avós. Começou a se cansar e precisou sentar. Cochilou e acordou perto do ponto em que deveria descer. Esperou um pouco mais e desceu. Rambo tinha vindo para buscá-lo e olhava para ele com uma satisfação contida. Os dois seguiram para o casebre e nada foi dito, naturalmente.

Passaram pelo Fiat 147 de Jorge, que não estava vazio. Tinha o Jorge lá dentro e uma moça, mas Jefferson não saberia dizer o que estavam fazendo.

Finalmente chegaram. O nariz de Jefferson estava escorrendo. Logo que entrou, encontrou o pai sentado no cômodo que era cozinha e sala improvisada, com algumas tralhas doadas. O pai se levantou e foi até o menino.

“Quanto ganhou hoje?”

Jefferson ficou quieto.

“Não ganhou dinheiro hoje?”

“Não.”

Recebeu um tapa violento na orelha, que o lançou ao chão. Não conseguia mais ouvir direito, apenas um zumbido e, ao fundo, alguns berros do pai que não dava para entender. Estava grogue, havia perdido o referencial, tudo girava.

Quando Jefferson caiu, suas fichas de fliperama se espalharam pelo chão. O pai, percebendo que não era dinheiro, ficou muito puto. Então era naquilo que o moleque enfiava o dinheiro?

Jefferson ouviu o pai chutar as fichas para longe enquanto via Rambo parado à sua frente. O menino estava com a orelha colada no chão, tremendo, os olhos ardendo e a garganta se contraindo, com muita vontade gritar e chorar. Mas não conseguia, estava paralisado, estava com medo, com raiva e com todos os sentimentos ruins do mundo.

O pai saiu, mas logo voltou.

Jefferson viu o pai parando ao lado de Rambo. O cachorro o olhou desconfiado, mas nada fez quando o homem pôs a mão em sua cabeça e a encostou no chão, no mesmo plano em que estava a cabeça do engraxate. Os dois amigos se olharam nos olhos e um contagiava o outro com o próprio medo.

O pai se certificou de que Jefferson estava vendo e deu um tiro na cabeça de Rambo. Ele havia saído para buscar o revólver trinta e oito.

E Jefferson abriu a boca, arregalou os olhos, ficou vermelho e tremeu mais ainda. Chorava com o pior desespero que é o reprimido. Tentava gritar alguma coisa, mas não conseguia. No máximo, uns gemidos animalescos de puro ódio. Suas lágrimas se espalhavam pelo chão como o sangue do cachorro.

Rambo continuava com os olhos abertos, e Jefferson jamais se esqueceria.

O pai saiu e deixou o filho no chão para sempre.

Jefferson, depois de um tempo saiu correndo cheio de horror. Deitou-se no quarto junto com os irmãos. Ouviu os gritos horrendos que a mãe deu quando viu o que jazia na cozinha. Fechou os olhos com muita força e viu todos os lutadores do Street Fighter fazendo seus principais golpes. Foi nisso que pensou à noite inteira.