Monday, September 17, 2007



O DOMINGO


A manhã de domingo havia acabado de começar, e tudo levava a crer que o dia seria belo, com o ar dourado e as árvores balançando ao vento, num verde quase que fosforescente. Armando acordou muito contente por ser domingo e por poder ter tempo livre o bastante para pensar no que fazer, até que chegasse a segunda feira sem que ele houvesse feito nada. Isto não o incomodava, pois era um sujeito acomodado e preferia ficar em casa nos fins de semana, apenas usufruindo do que as instalações lhe ofereciam.

Lúcia, sua esposa, não lhe cobrava nenhum programa diferente. Ela tinha uma agenda própria, pessoas para visitar, coisas para comprar e amigas com quem conversar. Quando Armando acordou, percebeu que Lúcia já havia saído. Deveria ser umas dez horas da manhã. Armando levantou-se e foi ao banheiro para sintonizar o espírito com as energias do universo enquanto dava uma cagada.

O aparelho de som tocava músicas New Age, que misturavam sons de instrumentos orientais com uns arranjos eletrônicos, algo que poderia ser usado para meditar, fazer ioga ou tai chi chuan, ou qualquer coisa que tivesse alguma relação com o equilíbrio das energias ou algo assim.

Ouviu-se a descarga e logo Armando saiu do banheiro com o jornal debaixo do braço e com os pensamentos no infinito. Ele nem lavou as mãos. Desceu e foi cortar mamão, banana, maçã e pêra para bater com leite. Ele gostava de passar a faca pelo mamão para retirar as sementes, era muito macio, com pouquíssima resistência, quase como margarina, mas no caso da margarina não haveria pretexto para cortá-la e cortá-la para ter aquele estranho prazer. Algumas passadas de faca e pronto, a margarina retornaria à geladeira. O mamão tinha que ser picado.

Entornou tudo em seu copo favorito, grande, de plástico e azul. Caminhou pela cozinha bebendo a vitamina em goles longos e logo terminou. Encheu de água e deixou na pia, já pensando no que faria em seguida. Foi até a janela, viu que era um bonito dia e respirou fundo. Resolveu sair para sentir o ar da manhã, tomar um banho de sol e ouvir os pássaros.

Logo que abriu a porta, foi abordado por Roberto que babava e sacudia o rabo. Armando sempre achou idiota a idéia de dar nome de gente a cachorro e era o que Lúcia havia feito. Ela deu o nome de Roberto ao pastor alemão deles, Armando não achou bom, mas preferiu deixar assim, pois em sete anos de casado nunca havia colhido um fruto sequer de uma discussão que não estivesse podre, corroído com culpa.

Foi brincar com o cachorro. Uma das brincadeiras era correr pelo quintal para ser seguido por Roberto. Não falhava, o cão sempre o seguia por todo o quintal, de perto. Às vezes, Armando parava e invertia a perseguição, mas isto durava pouco, pois Roberto era muito mais ágil e logo o deixava para trás.

Então começaram a brincar com a bola. Armando jogava e Roberto trazia de volta, divertimento familiar clássico. Roberto nunca ficava entediado, afinal, tudo que queria na vida era comer, ficar correndo e dormir.

“PEGA!”

E Roberto voltou com a bola nos dentes, colocando-a no chão perto de Armando.

“BOM GAROTO! HA HA HA!

E assim continuaram, até que um barulho muito estranho chamou a atenção de Armando. Vinha de trás da casa, do outro lado do quintal e foi um som isolado, de algo que havia atingido o chão e ficado lá, silencioso. As orelhas de Roberto se ergueram e Armando franziu a testa. Ele foi ver o que era. Andou e viu, no chão, o que parecia ser uma pequena pilha de trapos. O cão chegava perto, interessado, mas divagar na espera da decisão do dono. Armando chegou mais perto, curvou-se e olhou.

“O que é isso? Não é possível que seja isso mesmo. Será que é de verdade?” Pensou Armando enquanto mexia naquilo.

Era um bebê negrinho.

Armando o apanhou muito perplexo, completamente chocado. Enquanto o erguia, a cabeça da criança tombava mole para trás. E ele olhava para aquilo, examinando como se fosse uma coisa, um boneco. Mexeu num dos braços e viu que não era uma articulação de brinquedo. Começou a sentir com os dedos que era mesmo pele e que havia a maciez da carne. Os olhos estavam fechados, a cabeça mole, não havia nada além dos trapos e da criança, nenhum bilhete, nada.

Após responder às perguntas que ele mesmo fez, uma pontada violenta de desespero, misturado com ansiedade e angústia o furou no peito e fez suas pernas tremerem. Sua visão quase que sumiu por completo e ele tremia todo, com os pensamentos bloqueados. Entrou em casa com o passo acelerado e colocou o bebê sobre uma mesa. Olhou, olhou, mexeu nele, colocou um pouco de água na cabeça para ver se acordava e nada. Teve a idéia de tentar ouvir o coração do menino, mas para isso tinha que se acalmar, pois do contrário não se concentraria o bastante e acabaria ouvindo o próprio coração que, furioso, tentava quebrar o peito para fugir. Fechou os olhos e respirou fundo. Inclinou-se e encostou o ouvido na criança. Nada. Era um bebê de verdade e estava morto. Mas como? O barulho! Ele poderia ter caído do telhado! Não, um bebê no telhado? Isso seria ridículo! Talvez estivesse morto antes de cair. Alguém deveria ter jogado, mas não de cima do telhado, e sim do outro lado do muro, onde havia um terreno baldio.

Armando voltou correndo ao quintal e puxou um banquinho para que pudesse olhar por cima do muro. Não havia ninguém, nenhuma pista do que poderia ter acontecido. A rua atrás do terreno estava vazia e as casas dali estavam mortas. Apenas o vento e os pássaros, que de repente se tornaram uma turma de inúteis aos olhos dele.

Desceu e pôs-se a andar de um lado para o outro no quintal, sem idéias. O que poderia fazer? Não dava para simplesmente jogar o bebê fora e fingir que nada havia acontecido. Ou será que dava? Mas e se alguém descobrisse? Era um cadáver que ali estava, uma vida que havia se perdido, pobrezinho. Talvez o melhor fosse buscar ajuda, ligar para a emergência, eles é que cuidassem de tudo.

Voltou a olhar por cima do muro. Bateu-lhe um pressentimento de que algo pudesse ter mudado e ele se sentiu compelido a verificar. Não havia nada. Olhou com cuidado, na esperança de surpreender alguém escondido em meio aos arbustos ou se esgueirando por trás de um muro para espiá-lo de volta. Não conseguiu ver ninguém. Era inútil, seja lá quem fosse já teria fugido. Sem conseguir pensar em nada melhor, Armando entrou e se dirigiu à sala para usar o telefone, não sem antes parar diante da criança e fixar a atenção nela por alguns instantes. Continuava lá, do mesmo jeito, nenhum indício de ter se movido, nenhum barulho, nenhum choro. Tinha um cheiro diferente apenas, um cheiro de algum outro lar.

Foi à sala e retirou o telefone do gancho, mas o que iria dizer? Só poderia falar a verdade e nada mais. Discou nove, um, um e esperou.

“Que idiota! É um, nove e zero!” Pensou.

Apertou o botão para desligar e respirou fundo. Começou a apertar as teclas, primeiro o um, depois o nove e antes que pudesse terminar, ouviu o forte barulho da porta que dava para a garagem se abrindo. Era uma porta que tinha uma parte de vidro que sempre vibrava e fazia um som alto, e que era alto demais para aquele momento. Instantaneamente, virou a cabeça na direção da garagem e ficou segurando o telefone mudo. Teve a estranha idéia de que agora seria um bebê negrão, gigante, forte e ruim que vinha pegá-lo.

Os passos na escada foram ouvidos até que a imagem de Lúcia aparecesse, com algumas sacolas nas mãos e uma casualidade que cavava um abismo entre ela e Armando. Este a olhou muito nervoso com o telefone na mão esquerda e a direita o tapando como se não quisesse que ouvissem o que fosse dito. Ela estranhou:

“O que foi, Armando?”

“Lúcia, onde você estava?”

“Como assim onde eu estava? O que aconteceu com você?”

“Eu... você não faz nem idéia! Eu estava no quintal, deve ter uns quinze ou vinte minutos. Eu estava no quintal com o Roberto, você sabe, brincando, daí eu ouvi um barulho e fui ver o que era. Você nem imagina, era uma porra de um bebê que jogaram no nosso quintal! Eu peguei e trouxe para dentro, não sabia o que fazer! Já pensou?”

Lúcia o olhava atentamente e, embora se sentisse muito surpresa, conteve-se e não se deixou tomar pela alteração do marido.

“Vem aqui para você ver.”

E ela o seguiu até a mesa, onde pôde ver a criança, por entre os gestos de Armando, que apontava e dizia: “Olha aí, era desse bebê que eu estava falando!”.

Ela olhava tudo com muito pesar, mas calmamente. Avaliava a situação em silêncio.

“Então, quando você chegou eu estava ligando para a polícia.”

“E o que você ia dizer a eles, Armando?”

“A verdade! Que ele caiu no quintal e eu não consegui descobrir por que.”

“E quem acreditaria numa história dessas? Você parou para pensar nisto, Armando? Eu mesma estou achando difícil de acreditar em você. Se não o conhecesse ia dizer que é louco ou mentiroso.”

Armando não soube o que dizer em seguida, e Lúcia continuou:

“Imagina só, você é da polícia e liga um cara dizendo que está com um bebê morto nas mãos e que não sabe como ele foi parar ali. A história é muito esquisita, é pedir para ser suspeito. Você sabe como eles são, ainda é capaz de pedirem dinheiro para não fazer nada. Aí a gente não paga e pronto, queimam a gente!”

“Mas Lúcia, a gente é inocente! A gente é quase que vítima nessa história!”

“Só sabemos disso nós dois e quem jogou o bebê.”

“Então o que, vão falar que a gente seqüestrou, roubou a criança e matou? Pra que?”

“Não sei, isso ia ser com eles, mas por que não? A gente tá casado há sete anos e ainda não conseguiu ter um filho. Tem até as tentativas registradas na clínica. Por isso a gente poderia ter roubado de alguma maternidade, ou de alguma mãe desamparada. Depois o menino poderia ter morrido por qualquer coisa, doença, acidente, negligência, enfim. Qualquer história que inventarem vai ser mais convincente do que a que você me falou!”

“Mas e aí? Como é que vai ficar? Esse menino tem mãe também, e ela deve estar desesperada. Como é que a gente pode esconder isso da polícia?”

“Armando, pode ter sido a própria mãe que jogou a criança aqui, você sabe como é essa gente! Ainda vai ser capaz de pedir indenização!”

“Isso você não tem como saber!”

“Não vou, não vamos correr o risco.”

Àquela altura, a agitação de Armando ainda não havia diminuído, apenas houve uma mudança na tônica de suas emoções. Ele ia deixando de ficar triste e angustiado para ficar com raiva, raiva por não conseguir encontrar a melhor solução para o caso, raiva por suas sugestões serem tratadas como imbecilidades pela esposa.

“Por que não enterramos o bebê no quintal então?”

“Tá louco Armando? A terra do quintal é rasa, e o Roberto enterra e desenterra tudo ali, você bem sabe disso! Não quero o Roberto trazendo caveira de criança no meio de um churrasco, quando estiver cheio de gente!”

“A gente põe numa caixa e veda bem.”

“Que caixa? Você vai construir? Onde a gente vai achar um caixãozinho em pleno domingo? E tem mais, eu não quero isso aí no meu quintal, que coisa mais mórbida!”

Lúcia foi até o quintal e subiu no banquinho que estava próximo ao muro.

“As crianças todas já saíram para brincar. Não vai dar para enterrar no terreno, todo mundo ia ver.”

“Não tinha ninguém quando aconteceu.”

“Mas agora tem, e vai ficar assim até à noite. Armando, eu não quero perder meu domingo por causa disso, a gente tem que dar um jeito nisso logo.”

“Vamos levar para algum lugar bem longe e aí a gente enterra, ou joga no quintal de alguém, ou deixa na frente de um hospital.”

“Seu carro tá na oficina, esqueceu?”

“A gente podia levar no seu.”

“NEM MORTA!”

“Por que não?”

“Primeiro que vai demorar pra caramba pra achar algum lugar seguro. Vai levar o dia todo naquilo de, peraí, aqui não está bom, tem gente olhando, enfim, não dá, imagina o estresse! Depois, a polícia fica parando os outros no domingo pra procurar droga, eu vi a reportagem. Já estou até vendo o que vai ser, eles vão parar a gente, vão ver o embrulho, descobrir o bebê e aí você vai contar a sua história ridícula do quintal! Não quero!”

Lúcia entrou em casa e foi seguida por um Armando totalmente desconcertado.

“Ué, então eu não sei o que fazer.”

“Tem um jeito que é o mais rápido e seguro. O esgoto.”

“Como assim, não dá pra simplesmente pegar e jogar no esgoto!”

“Do jeito que está não dá mesmo, por isso que você vai ter que cortar em pedaços e jogar na privada.”

“O QUÊ? TÁ MALUCA? EU NÃO VOU FAZER UMA COISA DESSAS!”

“Não grita! Você vai ter que fazer, é o único jeito. O que, você não agüenta? Por acaso é esse o problema, você é um FROUXO?”

Armando não respondeu, estava transtornado demais para dizer qualquer coisa. Não poderia simplesmente dar as costas para tudo aquilo e sair, como faria se fosse uma briga normal. Não era, dessa vez eles tinham um problema ali, que não respirava e nem tinha pulsação, mas estava agitando o domingo.

Saiu do transe com o barulho da gaveta da cozinha sendo aberta e Lúcia mexendo nos talheres. Pôde ouvir um sussurro macabro: “cadê, cadê...”.

“Ah, está aqui.” Disse Lúcia segurando a faca de açougueiro que usavam nos churrascos. Era muito afiada e grande. Ela veio andando e pousou o instrumento com naturalidade ao lado do bebê, como se fosse uma enfermeira na preparação de uma cirurgia. Armando só ficou olhando.

Então ela pegou o avental que estava pendurado e jogou na direção de Armando, dizendo: “Toma.”. Ele o segurou junto ao estômago e ficou amassando aquilo cheio de ressentimento. Os dois ficaram se olhando por um tempo, numa guerra silenciosa. Parecia que nenhum deles cederia.

“Anda logo, veste isso Armando, para não se sujar.”

“Já falei que não vou fazer.”

“Qual o problema, Armandinho?”

“Não me chame de Armandinho!” E colocou o avental, rendido e contrariado. Olhou furioso para ela e apanhou a faca. Virou-se para o bebê e ficou ensaiando os golpes. Nenhum jeito parecia o correto, não sabia como começar e recuava quando previa o sangue escorrendo na mesa. A mulher batia o pé no chão levemente enquanto o marido hesitava. Ele pensava, tentava racionalizar tudo aquilo para criar coragem. Lúcia parecia tão resoluta, talvez ela tivesse razão. Além do mais, nem sempre a vida é do jeito que a gente gostaria, não dá para ficar esperando que as coisas aconteçam para nos agradar todos os dias. Tomar decisões difíceis como aquela era parte de ser homem. E aquele bebê, bem, Armando sabia que não tinha culpa, não poderia ter evitado a morte. Na verdade, foi muito bom ele estar ali bem na hora que a criança apareceu, porque se não tivesse ninguém, provavelmente o Roberto ia comer e seria pior.

Ficou paralisado com a faca quase encostando no corpo sobre a mesa. Não percebeu que ele mesmo tinha parado de respirar. Lúcia já estava perdendo a paciência:

“Esquece Armando, assim não vai dar. Vou chamar o seu irmão, o Marcão. Ele não tem esse tipo de problema.”

A última palavra de Lúcia foi pontuada pela faca que desceu com tudo sobre a mesa e decepou um braço do bebê. Como conseguiu quebrar a inércia, Armando foi até o fim, com uma expressão que oscilava entre o horror, o nojo, a raiva e o medo. Não conseguiu pensar em nada, fazia tudo por fazer. Apenas observou em silêncio que era mais difícil que cortar mamão, por causa dos ossos, e que teria que cortar bem pequeno e fino para não entupir a privada.

Lúcia, aproveitando-se da boa vontade do marido, trouxe um martelo de bater carne e disse: “A cabeça não vai passar, você vai ter que amassar.”Armando obedeceu já visivelmente perturbado e enjoado. Depois de bater bastante, foi ao banheiro vomitar. Não suportou aquele cheiro de açougue. Sentou-se perto da privada e ainda tinha o martelo na mão que, como o avental, estava sujo de sangue. Encostou as costas na parede e respirou ofegante, precisava de um tempo. Tremia e começou a chorar. Olhou pela janela do banheiro e observou as nuvens no céu, que passavam por cima de tudo num ruído contínuo e distante. Malditas nuvens!

Então Lúcia apareceu na porta do banheiro e ficou olhando para ele. Armando não sabia o que esperar dela, ficou tentando adivinhar o que ela estava achando dele. Então ela disse:

“Os pedaços não vão pular sozinhos na privada.”

Armando ergueu-se e foi terminar o serviço. Colocou tudo dentro de um balde e foi despachando aos poucos. Deu cinco descargas ao todo e foi tomar um banho merecido, para tentar esquecer.

Lúcia se dedicou ao acabamento da obra. Tudo que foi usado ela lavou e jogou fora. A faca, o martelo e o avental. O balde também, e até a mesa ela esfregou, desmontou e jogou fora. Todos os panos também, ela deixou de molho e jogou tudo fora, bem limpos. Por fim, se desfez das luvas que usou.

...


Quando a noite chegou, os dois estavam na cama vendo televisão e Armando fazia algumas carícias:

“O que seria de mim sem você? Você é tão decidida e sempre sabe o que fazer, será que eu te mereço?”

“Querido, você é um grande homem, só precisa de um empurrãozinho às vezes.”

Eles sorriram um para o outro e se beijaram de um modo tenro, devagar e sincero. Então fizeram amor. Ela por cima.